Camponeses, camponesas e especialistas têm lutado para tornar a agroecologia o ponto de encontro entre os caminhos para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do país

Foto: Alonso Crespo

Por Denise de Sordi*

A expansão do uso indiscriminado e exaustivo dos recursos naturais tem gerado desafios em escala global. As mudanças do clima, os processos de desertificação, o esgotamento e as alterações nos regimes pluviais, a extinção de espécies, o extermínio de povos, culturas, gostos alimentares e o desequilíbrio ecológico generalizado, são alertas sobre a urgência do necessário encontro entre as agendas de desenvolvimento social, econômico e ambiental no âmbito das políticas sociais conectadas ao direito à alimentação e à saúde.

É uma urgência política e social. Está expressa no desafio de colocar em sintonia formas de produzir que sejam aliadas da reprodução da vida, de sistemas agroalimentares e tecnologias sociais capazes de combater e minorar a pobreza, a fome, as injustiças climáticas e o racismo ambiental. É nessa dimensão que camponeses, camponesas e especialistas têm lutado para tornar a agroecologia o ponto de encontro entre os caminhos para o desenvolvimento social, econômico e ambiental do país.

Em Seberi, no Rio Grande do Sul (RS), a Cooperativa Mista de Produção, Industrialização e Comercialização de Biocombustíveis (Cooperbio), ligada ao Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), através de práticas agroecológicas, produz desde 2005 insumos biológicos, popularmente conhecidos por bioinsumos.

A produção da Cooperativa está inserida em um processo ampliado de transição agroecológica, proposto pelo campesinato organizado no MPA desde a década de 1990, enquanto forma de combater tanto o empobrecimento gerado com o endividamento para a aquisição de insumos químicos e contaminantes fornecidos pela cadeia produtiva do agronegócio, quanto a deterioração ambiental e o agravamento das mudanças climáticas.

Bioinsumos são utilizados, basicamente, para o controle de pragas e doenças e para fortalecer o crescimento das plantas. Eles são desenvolvidos a partir de microorganismos vivos que são benéficos à produção e ao restabelecimento da vida do solo e incidem ainda na proteção da saúde pública, seja retirando a necessidade de manejo de produtos contaminantes pelos camponeses em suas plantações, seja oferecendo aos consumidores alimentos saudáveis.

Marcos Oliveira, um dos coordenadores do MPA no Rio Grande do Sul, explica que o trabalho desenvolvido na Cooperbio concentra seus esforços para que camponeses e camponesas tenham acesso aos bioinsumos em todo o processo produtivo desenvolvido em suas propriedades.

Por exemplo “biofertilizantes, caldas e extratos vegetais para o controle de pragas e doenças, compostos orgânicos feitos com aproveitamento de resíduos da propriedade e pó de rocha, utilizados como remineralizadores do solo”. Para Viviane Chiarello, camponesa do MPA, “A ideia é buscar a capacitação de camponeses na produção e no entendimento do uso dos bioinsumos nas suas produções”, com o objetivo de “gerar autonomia para aos produtores”.

A geração de autonomia aos produtores por meio do uso dos bioinsumos é fator que ganha relevo quando visto em perspectiva com os dados da fome e da pobreza do Brasil que atingem 21,8% dos campesinos, com uma taxa de insegurança alimentar que atinge 60% dos domicílios em áreas rurais, dos quais 18,6% convivem com a face mais violenta da insegurança alimentar: a fome, de acordo com o 2˚ Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar divulgado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), em 2022.

Visando a sustentabilidade da transição agroecológica junto ao campesinato, a Cooperbio organiza suas atividades compreendendo a produção dos alimentos enquanto um processo que é social, econômico e tecnológico. Por isso, a estrutura da Cooperativa é toda voltada para o suporte às atividades organizadas nos eixos de Educação para a Sustentabilidade, Produção Agroecológica e Alimentação Saudável e Bioinsumos para a transição agroecológica, com o objetivo de apoiar os produtores campesinos no processo de adequação das práticas agroecológicas em suas propriedades.

A produção de bioinsumos em larga escala, em meio a uma das regiões do país demarcada pelo uso intensivo de agrotóxicos nos monocultivos de soja, milho e trigo direcionados ao mercado de commodities, significa a concretização de melhores condições de produção para os agricultores. Como pontua Marcos: “Temos diversos relatos de agricultores que entraram no processo de transição agroecológica e que conseguiram aprimorar a produção, aumentaram a renda e com melhor qualidade de vida”.

É uma janela de oportunidades aos trabalhadores do campo que, em geral, veem-se em um ciclo de dependência ligado à produção de commodities que condiciona o uso de insumos químicos e contaminantes, levando “problemas, tais como o controle dos preços dos insumos, ou mesmo da venda da produção serem conduzidos por grandes empresas multinacionais, gerando insegurança de produção” para os camponeses e para o país.

A experiência da cooperativa na aplicação dos bioinsumos em grandes áreas de produção apresenta o contraponto ao senso comum de que não é possível produzir de forma controlada e com qualidade utilizando-se técnicas da agroecologia. A eficiência desta forma de produção está alinhada às características das diferentes regiões onde se produz. Como explica Viviane, por exemplo, é justamente “na produção de biofertilizantes, através da captura de microorganismos eficientes das matas da propriedade ou de florestas, que se chega a um resultado satisfatório, pois aquele fungo ou bactéria já está adaptada às condições de clima e do solo daquele espaço. Então, quando você consegue fazer o processo de multiplica-lo ou até mesmo isolar determinado microorganismo não há a necessidade de adaptação ao ambiente no qual é inserido”.

Nesse processo, a relação com a natureza também se altera, gerando mais consciência sobre a necessidade de se preservar não só a produção, mas também seu entorno. Viviane relata que esse trabalho de décadas nas comunidades campesinas apresenta impacto “muito positivo e surpreendente”. Segundo ela, há histórias “muito bonitas de famílias que fizeram a transição agroecológica e que logo no início começaram a notar o reaparecimento de animais silvestres, plantas e indicadores da saúde de suas propriedades, com a melhor fertilidade do solo e o controle natural de insetos”.

As práticas agroecológicas em geral, e a produção de bioinsumos em particular, remetem às formas ancestrais de manejo da terra e de transmissão de conhecimento entre os próprios camponeses. “Trabalhamos com bioinsumos para compartilhar saberes ancestrais e unir as novas tecnologias de produção no campo, buscando preservar o meio ambiente, tornar aquela terra mais produtiva, devolver-lhe a vida e que ali se possa produzir um alimento saudável e muito mais nutritivo”, avalia Viviane, que ainda aponta para o encontro entre diferentes formas de desenvolvimento que unem o social, o econômico e o ambiental na dimensão do alimento saudável a ser disponibilizado à população.

Ao englobar processos educativos que são passados entre as gerações, nota-se não só maior autonomia, mas o melhoramento progressivo das práticas que permitem que os trabalhadores do campo assumam o papel de “guardiões da natureza” pois “começam a olhar de forma diferente, vendo que preservar o meio ambiente é importante, que preservar ou resgatar uma fonte de água tem uma importância gigantesca”, explica Viviane.

*Denise de Sordi é historiadora e doutora em História Social, pesquisadora da FFLCH/USP e da Fiocruz. É especialista em políticas e programas sociais e nas relações entre movimentos sociais e Estado no Brasil contemporâneo. Desde 2020 se dedica a pesquisas que analisam a emergência das Cozinhas Solidárias e Comunitárias enquanto formas de mobilização social que têm revitalizado a esfera pública brasileira.