O Saldo dos Quatro Anos de America First
Camarada Gringo analisa os 4 anos do governo de Trumpa partir do slogan America First, alguns momentos históricos em que esta corrente nacionalista teve uma forte presença na sociedade dos EUA e como o trumpismo está dando vida a esses fantasmas.
Em 20 de janeiro de 2017, Donald John Trump tomou posse como presidente dos Estados Unidos. Ao se dirigir à multidão em seu discurso, disse que daquele momento em diante seria somente America First – América em Primeiro Lugar. Trump não inventou o slogan, faz parte do discurso político dos EUA há mais de 100 anos e está profundamente associado a uma história de violência racial e rancor nacionalista.
A história nunca se repete, mas isso não quer dizer que o passado não informa, forma, influencia e alimenta como entendemos nosso presente. Em uma era de Fake News, de narrativas concorrentes e memórias distorcidas, agora, mais do que nunca, acredito que devemos interrogar o passado, aprender com ele para não reproduzir concepções, ideologias e valores como os que sustentam o American First, os quais foram concebidos exclusivamente para manter a diferença e perpetuar a desigualdade.
Em seu mandato, essa corrente tem sido central em sua política externa e interna e tem causado um impacto notável na área de imigração, policiamento e relações internacionais. Se por um lado, Trump inaugura o seu mandato proclamando America First na capital do país. Por outro lado, o mandato se encerra com protestos desencadeados pelo assassinato de George Floyd pela polícia. Os gritos de “No Justice, No Peace” (Sem Justiça, Sem Paz) ocuparam as ruas de todo o país e alcançaram o mundo.
A fim de entender o que o America First representa dentro do nacionalismo estadunidense, vou analisar alguns momentos históricos em que esta corrente teve uma forte presença na sociedade e como o trumpismo está dando vida a esses fantasmas.
Origem, Movimento e Ideologia do American First
A primeira vez que Trump usou o termo America First publicamente foi numa entrevista para o New York Times, em março de 2016. Ele disse: “eu não sou uma isolacionista, mas sou America First. Eu gosto da expressão. Eu sou America First”. O que Trump quis dizer com essa referência ao America First? Para responder, temos que voltar ao passado.
Desde o início dos EUA, como projeto político, a ideia da nação que viria a ser construída é baseada no excepcionalismo que tem suas raízes no período colonial e na lógica protestante. Os colonos ingleses protestantes que chegaram nas Américas, se viram como o povo escolhido para criar o novo mundo por vontade divina. Esta é uma das principais bases do nacionalismo estadunidense. Nos dias de hoje, é perceptível no discurso de que os EUA estão mais aptos para promover a democracia e a liberdade econômica no mundo do que qualquer outro país.
Dentro desta perspectiva nacionalista, o excepcionalismo, há duas correntes que competiam: os expansionistas e os isolacionistas. De forma breve, os expansionistas queriam conquistar os territórios até a costa do Pacífico e os isolacionistas acreditavam que deveriam fortalecer as terras e os bens que já detinham, na costa leste. Ambas correntes baseavam-se na própria concepção dos protestantes da superioridade branca. Trump não é um isolacionista, entretanto, eu argumentaria que são notáveis os ecos do isolacionismo no tipo de nacionalismo que ele propõe quando evoca o America First.
O termo America First ganhou significado político no final do século XIX, em referência ao controle da imigração, às limitações impostas ao comércio internacional e ao não envolvimento dos EUA em guerras além das fronteiras. Tais pontos fazem também parte do isolacionismo que, no início do século XX, esteve cada vez mais associado à ideia de America First. Pouco antes de se candidatar à reeleição, o presidente Woodrow Wilson, abraçou o slogan para se opor a entrada dos EUA na Primeira Guerra Mundial. É importante notar que, embora Wilson tenha se posicionado dentro do campo America First, ele não viu as ocupações militares na Nicarágua, (1912-33), no Haiti (1915-34) e na República Dominicana (1916-1924) como análogo ao envio de tropas para a Europa. Como filho de um teólogo protestante, Wilson reproduziu a mentalidade evangelizadora no governo. Ele acreditava que ocupando e segregando seus vizinhos do sul, ele poderia civilizá-los e, eventualmente, estariam prontos para a democracia. Era aceitável o uso do poder militar e econômico para dominar os países latino-americanos, mas quando se tratava da Europa, melhor deixá-los em paz, ou em guerra.
American First também abarcou questões internas dos EUA, um dos aspectos que eu quero destacar é a sua relação com o Ku Klux Klan (KKK). O grupo secreto foi fundado por ex-soldados do sul que perderam a Guerra de Secessão e desenvolveram uma rede descentralizada que acabou servindo como milícia do Partido Democrata da época pós-guerra. Em resposta, a câmara aprovou uma série de leis federais destinadas a reprimir o grupo paramilitar, diminuindo o poder dele. Porém, em 1915, o KKK foi oficialmente refundado, iniciando uma nova onda de violência miliciana no país inteiro. Um dos meios de propaganda do grupo foi o filme O Nascimento de uma Nação. Aliás, foi o primeiro filme a ser exibido na Casa Branca, ainda sobre a presidência de Woodrow Wilson. É uma narrativa romantizada que glorifica o período pós-guerra civil e a ascensão da KKK como salvadores e guardiões da pátria. A obra é explicitamente racista.
O novo KKK surgiu como uma extensão extrajudicial de centenas de governos estaduais e locais, uma milícia com o objetivo de manter a “ordem racial”. Durante a década de 20, eles adotaram America First como frase oficial junto com 100% American. Para eles, somente brancos protestantes deveriam ser considerados estadunidenses. Eles também iniciaram uma campanha de terror contra negros, judeus e de imigrantes católicos, da qual muitas das cicatrizes ainda são visíveis hoje. Já neste período, a frase estava muito mais associada a supremacia branca do que ao isolacionismo. Em 1922, o ano em que Mussolini tornou-se primeiro ministro, um pequeno jornal de Montana, no interior dos EUA, escreveu o seguinte sobre o fascismo italiano “Itália para os italianos. Os fascistas neste país chamam isso de America First. Parece que há muitos fascistas nos Estados Unidos, mas eles sempre estiveram sob a orgulhosa bandeira de “100% americanos”. O KKK, no sul dos EUA, era um dos braços paramilitares do governo, assim como os camisas-negras eram na Itália e os camisas-pardas na Alemanha nazista.
O grupo miliciano estava presente também em cidades como Nova York, onde ocorreu um episódio com Fred Trump, o pai de Donald. Em 1927, Fred foi levado à delegacia porque fez parte de confronto violento entre o KKK e a polícia, mas não foi preso. Nos anos 70, ele foi processado pelo govero federal por discriminação por não alugar apartamentos para negros. O pai de Trump ergueu seu império se aproveitando dos programas do governo de construção de moradias para população de baixa renda. Devido ao escândalo, Fred foi forçado a renunciar a presidência da Trump Organization e Donald assumiu o cargo, aos 27 anos. Uma das primeiras atitudes foi processar o governo por difamação, exigindo 100 milhões de dólares. Trump perdeu.
Donald esteve envolvido em vários episódios racistas ao longo da sua vida. Dentre eles, destaco o que aconteceu em 2011 em relação a Obama. Trump foi um dos porta-vozes da teoria da conspiração de que Obama não teria nascido nos Estados Unidos e, portanto, não tinha o direito de ser presidente. Tais comentários racistas e xenofóbicos talvez fosse uma semente do que cinco anos depois levaria Trump a se identificar com o America First.
O American First de Donald Trump
A política de imigração foi central na campanha de Trump, em 2016. Além de declarar que a maioria dos imigrantes mexicanos são estupradores, traficantes de drogas e criminosos, Trump também apresentou uma solução simples, porém irreal: construir um muro na fronteira sul e fazer com que o México pague por ele. Desde que assumiu o cargo, Trump basicamente reformou o muro que já existia. E, como se pode imaginar, o México não pagou por isso. No entanto, a presidência de Trump produziu mudanças reais nas políticas de imigração dentro da tradição do American First. O presidente reduziu a imigração legal em quase 50% através da emissão de uma série de ordens executivas. Os grupos mais afetados são os requerentes de asilo, refugiados, familiares de cidadãos e trabalhadores – o que abrange quase todas as categorias de vistos permanentes.
Também vimos um aumento da presença e do policiamento de órgãos federais como Immigration and Custom Enforcement (ICE) e Customs and Border Protection (CBP), os quais funcionam dentro do Departamento da Segurança Interna (DHS). Esta é uma das instituições federais criadas pelo Ato Patriota em 2002, após o 11 de setembro e tem uma capacidade irrestrita de vigiar, apreender, deportar e, em algumas circunstâncias, matar indivíduos por suspeitar que são estrangeiros – a princípio. ICE e CBP são responsáveis pelos Centros de Detenções que recentemente tornou-se notícia por realizar histerectomias em imigrantes sem autorização e por deixar mais de 500 crianças separadas dos pais, sem saber onde eles estão. Vários políticos da esquerda vocalizaram que tais centros devem ser considerados campos de concentração.
A princípio, ICE, CBP e outros órgãos federais estavam voltados para os imigrantes. Entretanto, após a onda de protesto desencadeada pelo assassinato de George Floyd em maio de 2020, o cenário mudou. O uso de agentes federais tornou-se um meio de controle de multidão. Trump ordenou que soldados federais impedissem os protestos sob a justificativa de proteger propriedades do governo, como estátuas ou tribunais. Durante as ações, eles dispararam gás lacrimogêneo e balas de borracha, sequestraram manifestantes e não se identificaram como agentes federais. A estreita relação entre o braço executivo controlado pelo presidente, a tradição miliciana do America First e a aplicação extrajurídica da violência talvez seja melhor compreendida no assassinato de Michael Reinoehl no dia 3 de setembro pela tropa federal, U.S. Marshals.
A história não é tão simples, mas a resolução mostra como a milícia está dentro do governo federal e o problema que isso significa. Reinoehl admitiu ter matado numa manifestação um membro do grupo da extrema-direita com características milicianas, Patriot Prayer. Segundo o acusado, foi em legítima defesa. O Departamento de Justiça enviou tropas federais para capturar Reinoehl. Ele foi morto na ação. O médico legista afirmou que o corpo dele foi atingido por 37 cartuchos de munição. Em meados de outubro, num comício na Carolina do Norte, Trump se gabou por ter enviado os agentes federais que mataram Reinoehl. Trump disse, “enviamos os U.S. Marshals, demoramos 15 minutos e acabou … Eles sabiam quem ele era, não queriam prendê-lo e em 15 minutos terminaram”.
Reinoehl foi executado por tropas federais sem julgamento. O uso de agentes do governo federal como esquadrão de morte por Trump é inaceitável, mas não surpreende.
Por último, gostaria de falar da influência do America First na política internacional. Desde que Trump assumiu o poder, esta corrente tem influenciado este campo, talvez mais do que qualquer outro presidente na era pós-Segunda Guerra Mundial. Isso é especialmente claro no que diz respeito à preferência de Trump por relações bilaterais (entre dois países) em oposição a acordos multilaterais (entre vários países). Após Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos lideraram a criação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), um corpo militar intergovernamental, atualmente composto por 30 países. A ideia principal da OTAN é levar a paz mundial através da presença e do poder de um exército global. Paz por meio da ameaça de guerra mundial, por assim dizer. Em muito sentidos, a OTAN é a organização que melhor exemplifica a lógica de multilateralismo na era contemporânea.
Na década de 90, Bill Clinton aproveitou as habilidades belicosas dessa aliança militar ao orquestrar as campanhas de bombardeio da OTAN nos Balcãs. Depois do 11 de setembro, o governo de George W. Bush fez uma petição para que a organização invocasse o Artigo 5 pela primeira vez na história. Segundo o artigo, um ataque a um membro da aliança será visto como um ataque a todos os membros, justificando uma guerra. Pouco tempo depois, as tropas da OTAN estavam no Afeganistão com a missão de derrubar o governo do Talibã. Em relação à guerra no Iraque. A OTAN não autorizou oficialmente a invasão em 2003. Porém, isso não foi um empecilho para Bush manter uma política externa baseada no multilateralismo. Ele formou uma nova coalizão militar, ironicamente chamada Coalition of the Willing (Coalizão da Vontade). Foi com essa coalizão que invadiu e ocupou o Iraque. Durante os anos de Obama, os EUA voltaram a priorizar a OTAN. Em 2011, ajudaram a derrubar Muammar Gaddafi na Líbia. Um ato que desestabilizou a região e contribuiu diretamente para o surgimento do Estado Islâmico no Norte da África e no Oriente Médio.
Desde que assumiu o cargo, a OTAN tem sido um dos principais alvos de críticas de Trump. Frequentemente, ele reclama que os EUA gastam mais comparado aos outros países. É importante destacar que as objeções de Trump ao multilateralismo não são baseadas em críticas a diferença de poder dos países na organização, metodologias ou objetivos gerais da organização. Elas são fundamentadas no bilateralismo que chega com Trump ao ressuscitar o America First junto com os fantasmas do isolacionismo. Por isso, sua política externa se foca em acordos bilaterais, em que os EUA negociam somente com um país e tentam tirar vantagem dele.
Nos últimos 75 anos, o multilateralismo tem sido quase hegemônico na política externa do mundo, tendo os EUA no centro. Trump, ao trazer traços do isolacionismo, notadamente vindo pela via do bilateralismo, inicia um conflito com a ordem vigente. Algumas pessoas podem pensar que Trump, portanto, se apresenta como mais perigoso para o seu próprio país do que para o resto do mundo. Bom, as coisas não são tão simples – a frase é America First. Não estamos cem anos atrás quando os EUA não eram tão poderosos como hoje. Abandonando as instituições multilaterais, Trump, na verdade, torna-se mais perigoso. Ele é o chefe de uma das maiores forças armadas do mundo que está presente em 150 países, e com o poder de mandar a CIA para qualquer canto do planeta. E, não só para vigiar, mas, também para apoiar movimentos nacionalistas com os quais ele se identifica. Não nos esqueçamos que America First do KKK foi associado ao fascismo italiano na esfera pública estadunidense. O fato de Trump não se inserir no coletivo das organizações como a OTAN, não significa que não queira aliados, basta ver a relação dele com Boris Johnson, Narendra Modi, Viktor Orbán ou Jair Bolsonaro.
O bilateralismo reduz as restrições de Trump ao negociar acordos internacionais e ao tratar de questões da política externa. Na prática, essa política pode ser notada na pirataria que Trump fez com remédios, vacinas e equipamentos para combater a COVID-19. Isso deixou muitas partes do mundo sem acesso. Ou ainda, quando por conta própria, autorizou execução no Iraque do Qasem Soleimani, o general iraniando da Guarda Revolucionária Islâmica e da Força Quds.
Trump não sendo reeleito é muito importante para os EUA e para o mundo. Entretanto, a política multilateralista como existia antes não é a solução, paz mundial não se faz com ameaças de guerra, seja por países poderosos como EUA ou China ou por organizações como a OTAN. Nenhum país, incluindo os EUA é excepcional, e uma saída para se repensar uma organização mundial mais igualitária é começar por ver o mundo por uma perspectiva menos nacionalista e mais internacionalista.
Para saber mais sobre as eleições, história e política dos EUA e das Américas siga o podcast Camarada Gringo do selo NINJACast e o canal homônimo no Youtube.