
‘Cães’, do uruguaio Gerardo Minutti Bonilla, expõe o ‘jeitinho masculino’ de resolver as coisas
Exibido na 49ª Mostra SP, o longa conquista o público ao retratar tensões cotidianas da classe média sul-americana, em tom que evoca “Parasita”
Por Daniele Agapito
“Vamos chamar a polícia?”
“Não, deixa que eu resolvo.”
Homens gostam de resolver as coisas de um jeito muito particular. E em “Cães”, as resoluções incluem tiro pra cima na madrugada, ameaças, gritos, carro arranhado do retrovisor até a traseira e cachorro envenenado.
A coprodução entre Argentina e Uruguai, dirigida por Gerardo Minutti Bonilla, começa com um gesto banal: os vizinhos (os Perna) deixam a chave de casa com outro casal (os Saldaña) para cuidarem durante as férias, e termina como um estudo de caso muito preciso sobre as pequenas guerras masculinas travadas nos bairros de classe média da América do Sul.
Se o sul-coreano “Parasita” expunha diferenças sociais numa arquitetura vertical — subsolo versus superfície —, “Cães” faz o mesmo em linha reta. Parede com parede, na calçada ao lado. O diretor filma um bairro horizontal, quase idêntico ao da sua infância: “Este bairro parece o bairro onde cresci.”
Aqui, o jogo de comparações e frustrações “capetalistas” aparece nos detalhes: onde um tem uma pequena adega climatizada, o outro guarda as bebidas na porta da geladeira; onde um tem carro popular, mas automático, o outro tem um Fiat Uno Mille que só pega no tranco; o ar-condicionado de um e o ventilador de teto do outro. Pequenas distâncias que ferem, sobretudo, o ego dos protagonistas — os maridões. Não são famílias com abismos profundos (Cidade de Deus versus Alto Leblon, ou Suvaco da Cobra versus Orla de Boa Viagem); é a tensão entre quase iguais, incubada pelos votos de vizinhança pacífica.
O casal Saldaña, encarregado de cuidar da casa dos Perna, não resiste à curiosidade. Entram, exploram, esvaziam garrafas de uísque, testam cremes de rosto importado, tomam banho de banheira, se encantam com o tamanho da televisão e experimentam um pacotinho de cristal (metanfetamina). Aqui destaco o trabalho da atriz María Elena Pérez, também uruguaia, que devolve vida à personagem num instante que soa como uma gloriosa pausa na rotina de mãe e esposa exausta. A sequência é filmada quase toda na penumbra, com focos de luz que se acendem de vez em quando, sem fazer alarde. A câmera caminha junto, cúmplice, como um terceiro intruso. “Sou amigo da obscuridade, não temo o escuro”, diz Bonilla — e a cena parece ser a favorita do público da sala 2, na Reserva Cultural.
Mas o jogo divertido muda quando o cachorro dos Perna desaparece. E, com ele, a máscara boa praça dos personagens masculinos.
As suspeitas viram insultos. Um risca o carro do outro com a chave; o outro envenena o cão do vizinho para vingar o seu pet. Existe ainda o “segurança” autoproclamado do bairro, cobrando por uma vigilância quase como quem ameaça na camaradagem. Aliás, este personagem canalha, oportunista e asqueroso é interpretado pelo excelente ator uruguaio Roberto Suárez. No fim, todos os conflitos parecem convergir no mesmo dilema: o pavor masculino de “ficar por baixo”, de perder o controle da narrativa e a necessidade de autoafirmação.
“Cães” é menos sobre cachorros e mais sobre homens marcando território. O homem que não perde a oportunidade do duelo e prova que a imaturidade não tem idade. Um filme sobre vizinhos, sim, mas também sobre fronteiras, pequenas posses, autoestima, ego frágil e as eventuais consequências de resolver tudo “do jeito deles”.