Quem dita o que é música, afinal? A batalha entre o erudito e o Funk. Parte I
No Brasil, quando o assunto é música, as obras “eruditas” contemporâneas e o funk são vistos por muitos como uma não-música, como barulhos. A “alta cultura” e a “baixa cultura” são colocadas no mesmo plano. Mas por quê?
Por Bruno Ramos e Thiago B. A. De Souza
Imagine dois sujeitos bem brasileiros (sujeitos do Brasil real, pra usar o “real” de Machado de Assis) colocados diante da música de Karlheinz Stockhausen por headfones em plena praça da Sé, em São Paulo*. Um deles ouve sua consagrada música Gesang der Jüngilinge [Canto dos Adolescentes] e fala que a música “tem uns barulho bem louco” logo antes de perguntar: – “isso é música?”. O outro sujeito nem fica muito tempo com os fones de ouvido, diz que há um barulho e confunde a música de Stockhausen com uma interferência.
No Brasil, quando o assunto é música, as obras “eruditas” contemporâneas e o funk são vistos por muitos como uma não-música, como barulhos. A “alta cultura” e a “baixa cultura” são colocadas no mesmo plano. Mas por quê?
Antes de responder, cabe lembrar a disparidade social entre quem faz a chamada música “erudita” contemporânea e quem faz o Funk. Vá a um concerto contemporâneo na sala São Paulo e diga quantos negros há ali? Vá a um “fluxo” – baile Funk de rua – e veja a cor da pele das pessoas.
Mas, vamos tentar responder o porquê da música erudita de hoje e o Funk serem vistos pela população média brasileira como ruídos indesejáveis. Um fato: não há educação musical para todos no Brasil e a boa educação musical (em termos de acesso) é ainda mais rareada. Muitos dos compositores brasileiros que compõem música “erudita” contemporânea estudaram na Europa ou EUA, e se não estudaram têm profundas taras europeias ou americanas.
A partir do século XX, a música de concerto passou a ser muito técnica e a trabalhar com questionamentos acessíveis só a quem conhece minimamente a linguagem musical. O resultado foi a criação das escassas plateias de música de concerto contemporâneo, algo que certamente deixou alguns compositores ressentidos: “se é arte não é para a massa”, disse Arnold Schoenberg. “Quem se importa se você escuta?” diz o título de um importante artigo do compositor Milton Babbitt.
Talvez essas frases soltas associadas a estes compositores deixem o brasileiro médio com a impressão de que essa arte musical contemporânea seja algo para metidos de sangue azul e isso cria um distanciamento birrento da estética contemporânea… logo, não é Música. Bem a grosso modo, falta o mínimo preparo musical ao brasileiro médio para entender a música de concerto.
Mas e no caso do Funk? Por que dizem que não é música?
O mesmo pode ser dito! Falta o mínimo de educação musical pra poder enxergar e ressignificar o Funk como experiência sonora legítima. Soma-se a isso o moralismo classista que vê nos palavrões um motivo para reforçar a repulsa aos mais pobres. Será que já leram Bataille ou Sade**?
Aliás, o contato com as ideias e obras dos grandes nomes da música de concerto do século XX (além do já citado Stockhausen, Pierre Schaeffer, John Cage, Murray Schafer e muitos outros) dá uma porrada na cabeça – num ótimo sentido – e nos permite ampliar a nossa concepção do que é musical.
O musicólogo brasileiro que mergulhou no estudo do Funk fez, antes, o doutorado na Inglaterra trabalhando com as ideias de Pierre Schaeffer. Não é um desavisado no que se refere a Música, embora seja visto assim só por ter pesquisado o Funk. O nome deste sujeito é Carlos Palombini, professor e musicólogo da UFMG.
Entretanto, as ideias dos músicos contemporâneos são muitas vezes rejeitadas pelos próprios músicos clássicos, que tocam, no máximo, um Mahler ou um Villa-Lobos. Por isso, há no Brasil a figura do Músico Clássico que pouco conhece o pensamento musical contemporâneo do Século XX e propaga o pré-conceito, afinal supõe-se que, sendo músico clássico, ele é uma autoridade, é visto de outro modo, com maior capital simbólico. Vejam as figurinhas da música clássica brasileira que mal conhecem um Lachenmann por exemplo: Julio Medaglia, João Carlos Martins e, para os mais jovens, a figura do chamado Lord Vinheteiro – que se comporta como um aristocrata da música clássica e costuma propor discussões estéticas sobre o funk sem o mínimo embasamento musicológico para além do preconceito que, fatalmente, empobrece e inviabiliza qualquer discussão.
*O experimento de colocar um ouvinte diante da música de Stockhausen foi realizado pela equipe da TV Cultura, no programa Provocações, quando o compositor Willy Corrêa de Oliveira foi entrevistado. Willy Corrêa deixou de compor música erudita por algum tempo, pois acreditava que este gênero estava associado ao mundo burguês.
** George Bataille (1897-1962) foi um importante escritor francês, autor da novela História do Olho (1928), obra que narra uma série de acontecimentos sexuais; e Marquês de Sade (1740- 1814) foi autor de diversas obras eróticas, consideradas pervertidas, dando origem ao termo “sadismo”.