O pânico da burguesia é o ócio (criativo) da quebrada
Quarentena explodindo e a favela tá como? Máscara e… pau na máquina! Não dá pra parar, não dá pra esperar a segunda parcela do auxílio chegar, já que, infelizmente, ainda é preciso comer todos os dias. E, pras gerações que ainda tão buscando seu lugar ao sol, tem mais: o ENEM não vai ser cancelado.
Quarentena explodindo e a favela tá como? Máscara e… pau na máquina! Não dá pra parar, não dá pra esperar a segunda parcela do auxílio chegar, já que, infelizmente, ainda é preciso comer todos os dias. E, pras gerações que ainda tão buscando seu lugar ao sol, tem mais: o ENEM não vai ser cancelado.
Ou seja, se pra eles lá “de cima” tempo é dinheiro, para nós, tempo é luta. E ela não tem fim, acredite! No embalo dessa máxima, a briga pela sobrevivência impede a gente até de ganhar dinheiro. Quem ganha pra fechar o mês só pode pensar de 30 em 30 dias. Não dá pra “ganhar dinheiro” assim. Muito se fala sobre empreendedorismo da favela, por exemplo. O romance corre solto como se a gente empreendesse pra brilhar nas feiras de negócios. A verdade é que a favela empreende pra seguir viva.
Vou passar a visão: você aí sabia que no fluxo (baile funk de favela) tem gente que vende copão descartável só com gelo dentro? Você consegue sacar a compreensão que esse cara tem do seu consumidor? A molecada compra bebida mais barata, não gasta na rua e precisa só de copo e de gelo, porque ninguém merece sair por aí com um isopor no rolê. Então, o cara vende copão e gelo! Mas isso, claro, não se ensina nas escolas de business de Londres ou de Nova York. Isso é a necessidade gritando no seu ouvido e dizendo: “Se vira, negão! Amanhã tem que ter arroz nessa panela”.
Agora, imagina o que aconteceria se as necessidades básicas da favela estivessem sanadas? Se fosse possível pensar em “fazer dinheiro” de verdade e não só o suficiente pra encher barriga? Se fosse possível pensar no quanto nosso sistema é máquina de moer gente… Imagina o que seria possível criar com o tempo livre e confortável que outras classes sociais têm?
Como minhas atividades permitem ficar quieto em casa nesse tempo de pandemia – um direito que o nível de desigualdade desse país transformou em privilégio – eu entendi uma coisa: o pânico da burguesia é o ócio da periferia. O medo real é que esse tempo em casa, se cuidando e recebendo o auxílio emergencial ou parte do salário (algo que deveria estar garantido), seja um gatilho para a descoberta do nosso ócio produtivo. Que a gente entenda que rende mais quem tem mais tempo pra pensar, pra sonhar.
O pânico é que, distante das funções mecânicas e subalternas que somos obrigados a desempenhar para colocar comida na mesa, encontremos tempo para refletir. Que a gente descubra que desenvolvimento intelectual não é coisa de branco. Que o governo existe pra garantir dignidade pro seu povo e não pra servir ao Deus mercado – aquele menino mimado que quer fazer tudo sozinho, mas basta uma crisezinha pra voltar correndo, pedindo socorro pro Estado. O medo é que a gente entenda nossa opressão, que burguês é inimigo e não objetivo e, com a força que esses séculos de descaso nos obrigaram a criar, partamos pra cima, real oficial, para arrancar o que é nosso.
Quando eu vejo a segunda parcela do auxílio emergencial (que leva esse nome só pra tirar sarro da cara de pobre) atrasada desse jeito, tudo isso que eu estou falando fica mais evidente. Se o pobre entender que esse dinheiro pode ter regularidade, que é possível que a União garanta alguma dignidade no caos, ele vai começar a pensar em outras coisas e não só na refeição do dia. E barriga cheia significa cabeça pensante. Tá aí o perigo, tá aí o grande boicote. Eles são os donos do jogo e as cartas estão todas marcadas.
A ideia de que esse tempo desacelerado, essa reestruturação da sociedade, vire uma chave na nossa cabeça é o grande temor da branquitude. Em casa, com renda básica garantida, descobriríamos o segredo dos brancos: como ser o dono do tempo e seus recursos. Mas o tempo e a tranquilidade com que o branco aprende, trabalha e desenvolve suas habilidades é consequência de um país colonizado onde pobres e pretos estão, em sua maioria, atados a todos os tipos de trabalhos que a branquitude é incapaz de executar. Pra acreditar em mim, basta dar uma olhada nos posts que pipocam na quarentena sobre como é lindo aprender a cozinhar um macarrão, limpar o banheiro ou a bunda dos próprios filhos.
Entre a elite que descobriu a vassoura e o governo genocida – que acha que direito é esmola -, ainda temos um outro setor, mais ressentido, afetado também pelas mudanças em curso, mas incapaz de se ver como peça de manutenção desse sistema que é a classe média. O sistema ensinou pra ela que o problema somos nós, o que torna o diálogo muito difícil, pra não dizer impossível. Atrapalhada, olhando maravilhada pros Estados Unidos, agarrada à narrativas meritocráticas e com vergonha de si mesma, ela sabe que nunca vai ter o dinheiro do andar de cima e nem a criatividade e malemolência do andar debaixo.
Em sua autobiografia, escrita em parceria com Alex Haley, Malcolm X mostra que o racismo é o crime perfeito da elite: sem acesso à informação, à comida de qualidade, à educação, à autoestima e, até mesmo, o tempo, o favelado se torna incapaz de enxergar possibilidades de emprego digno ou de compreender sua própria opressão. No desespero, a única possibilidade de existência com alguma dignidade que ele vê é o crime. Só que sua criminalização é o que o sistema planejava desde o início. Quando ele finalmente cede ao estereótipo, ele se torna um exemplo e retroalimenta essa ideologia racista que vai vitimizar a próxima geração.
Esse é um momento de balanço. De surfar no caos e fazer pressão pela taxação das grandes fortunas, pela renda básica. Lembrar todo mundo que não estudamos em casa nas mesmas condições que os boys estudam. Que em um país como o nosso, em que criança ainda é mordida por rato na cama de casa, deveria ser proibido que alguém acumulasse dinheiro como nossa elite acumula (são mais de 200 bilionários e a fortuna deles ultrapassa 1 trilhão de reais, você sabia?). Ou seja, a ausência de uma justiça fiscal efetiva mata feito polícia na quebrada.
É na crise a gente se reinventa e se fortalece. Sempre foi assim. E não porque vivemos muitas crises pontuais, mas porque, para nós, a vida é uma crise constante. A gente combinou de ficar vivo, mas a gente também tá combinando de dominar a porra toda. Se liga!