Nos bastidores de trajetórias acadêmicas e ativistas, Bruna Irineu é uma voz proeminente na luta pelos direitos LGBTQIA+ e na valorização do ativismo lésbico. Goiana criada em Mato Grosso, Bruna construiu uma jornada que transcendeu barreiras geográficas e desafios pessoais. Desde a militância lésbica até o reconhecimento nacional como uma estudiosa crítica das políticas para a população LGBTQIA+, sua jornada inspira a formação de ativismos fora do eixo e, sobretudo, a sua disputa enquanto conhecimento científico.

“A militância lésbica e a produção científica se conjugaram em minha trajetória, como uma “salvação”, que me ajudou a enfrentar a lesbofobia”, afirma.

Em uma conversa com o Planeta FODA, Bruna nos guia através de momentos relevantes de sua trajetória. Desde a fundação do primeiro coletivo universitário de diversidade sexual em Mato Grosso, até sua incursão nos estudos acadêmicos e pesquisa sobre gênero e sexualidade, sua história é intrinsecamente ligada ao ativismo e à busca por justiça social. Bruna compartilha insights sobre a evolução do ativismo LGBTQIA+ nas universidades, destacando os desafios enfrentados, as mudanças conquistadas e os obstáculos persistentes. Ela reflete sobre como a universidade se tornou um espaço propício para o engajamento político dos estudantes LGBTQIA+, especialmente nos tempos atuais, quando a luta contra a LGBTfobia é mais crucial do que nunca.

“Toda diferença que a escola busca uniformizar, na universidade pública isso se dissolve, independente do curso que você estiver vinculado, mesmos os mais elitizados, os espaços de sociabilidade apresentam uma diversidade que não cabe num regramento uniformizante”, afirmou. “E isso é um motor para se coletivizar”.

Ademais, Bruna explora a produção de conhecimento sobre o ativismo LGBTQIA+ fora dos grandes centros urbanos, enfatizando a importância de trazer visibilidade para as experiências e resistências presentes em contextos menos explorados. Sua análise aponta para o crescimento notável da produção acadêmica e artística sobre o ativismo lésbico, ao mesmo tempo em que destaca a necessidade de alargar essa disseminação para abranger regiões periféricas e rurais. Ela compartilha suas perspectivas sobre os desafios, progressos e as nuances interseccionais que cercam o movimento lésbico, e discute a transformação necessária para que as vozes marginalizadas sejam ouvidas e reconhecidas em toda a sua complexidade.

Nesta entrevista, Bruna não apenas compartilha sua jornada pessoal de ativismo e pesquisa, mas também incita à ação coletiva e à solidariedade entre os segmentos LGBTQIA+. Com um olhar crítico sobre o presente e uma visão esperançosa para o futuro, Bruna nos convida a refletir sobre como a união dessas vozes diversas pode fortalecer a luta contra a discriminação, promover a igualdade e desencadear mudanças sociais fundamentais.

Foto: Reprodução / Instagram

Bruna, para começar conta um resumo para gente da tua trajetória enquanto acadêmica e ativista social.

Nasci em meados da década de 1980, em Mineiros, interior de Goiás e cresci em Rondonópolis, interior de Mato Grosso. A militância lésbica e a produção científica se conjugaram em minha trajetória, como uma “salvação”, que me ajudou a enfrentar a lesbofobia. Acabei me inserindo, ao mesmo tempo no ativismo e na pesquisa sobre gênero e sexualidade, no início dos anos 2000, em Cuiabá, Mato Grosso, na UFMT.

Entre os anos de 2003 e 2006, cursei Serviço Social na UFMT, participei da organização de paradas da diversidade de Cuiabá, fundei o MULES – primeiro coletivo universitário de diversidade sexual de Mato Grosso e contribuí na produção dos primeiros estudos sobre Lesbianidades e Educação; Segurança pública e homofobia; Serviço Social e homossexualidades, da região. Em Goiás, entre 2007 e 2009, quando fui cursar o Mestrado na UFG, militei no grupo Colcha de Retalhos e integrei a primeira pesquisa brasileira sobre políticas públicas para população LGBT no Brasil, feita pelo grupo de pesquisas Ser-tão, que foi financiada pela gestão Lula na época.

Iniciei a carreira docente em universidade pública em Tocantins, no Curso de Serviço Social, onde coordenei diversas ações de pesquisa e extensão na UFT, incluindo os primeiros dados de violência e violação de direitos do estado. Em Palmas, em 2014, fundei com outras companheiras, o primeiro coletivo de lésbicas e mulheres bissexuais do estado – LésBiToca, que atuou na pressão para formulação de políticas estaduais LGBT.

A partir da minha pesquisa de Tese de Doutorado, realizado na UFRJ entre os anos de 2011 e 2016, meus estudos sobre políticas públicas apresentaram uma crítica anticapitalista que se tornou referência para os estudos sobre direitos LGBTI+ no Brasil, fazendo uso dos conceitos pouco utilizados a época: homonacionalismo, pinkwashing e homofobia cordial.

Por ter vivido em uma época sem representações LGBTI+ e em contextos interioranos, me engajei em circular as memórias e resistências LGBTI+ produzidas fora dos grandes centros, realizei através do audiovisual 2 documentários premiados em festivais regionais de cinema no Tocantins (Festival Chico e Festival Miragem): “No avesso da noite de Palmas” e “Memórias (In)visíveis: retratos do Tocantins LGBT”.

Depois de 9 anos em Tocantins, retornei em 2018 a Cuiabá para atuar no Departamento de Serviço Social da UFMT, onde me dedico as pesquisas sobre as políticas LGBTI+ e ofensiva antigênero na América Latina, ações de extensão para a preservação do patrimônio imaterial LGBTI+ e a disseminação do pensamento lésbico e feminista dentro e fora da universidade.

Entre os anos de 2019 e 2021, me tornei a primeira pesquisadora lésbica a presidir a Associação Brasileira de Estudos da Trans-homocultura – ABETH, entidade acadêmico-política criada em 2001 e que reúne pesquisadoras(es) dos estudos de diversidade sexual e de gênero.

 

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A universidade é considerada um espaço propício para aproximar os estudantes da política. Você acredita que o mesmo se aplica, especialmente nos dias de hoje, a estudantes LGBTQIA+ em relação ao ativismo contra LGBTfobia?

A universidade se modificou muito nos últimos 20 anos. As ações afirmativas e os processos de interiorização das universidades, fruto das lutas sociais, foram determinantes para isso.

Ainda assim, mesmo com tantas mudanças, eu acredito que há muito a se avançar num projeto popular e emancipador para universidade pública brasileira. Prova disso, é que temos sofrido inúmeros ataques de setores conservadores, em especial no último governo federal.

Exatamente por termos projetos distintos para educação superior e que estão em disputa, é que a universidade segue sendo um espaço para aproximar estudantes da política, desmistificar processos históricos naturalizantes da violência estrutural. E a relação de presença/ausência e visibilidade/invisibilidade quando se trata das questões LGBTQIA+ fortalecem a necessidade de se coletivizar e é na universidade que vamos percebendo isso. Toda diferença que a escola busca uniformizar, na universidade pública isso se dissolve, independente do curso que você estiver vinculado, mesmos os mais elitizados, os espaços de sociabilidade apresentam uma diversidade que não cabe num regramento uniformizante. E isso é um motor para se coletivizar.

A tua trajetória é marcada pela atuação em espaços acadêmicos “fora do eixo”. Como você avalia a produção de conhecimento sobre o ativismo LGBTQIA+ nesses espaços, em especial em relação à visibilidade?

Os estudos sobre diversidade sexual e de gênero passaram por processos importantes de consolidação, como o aumento do número de grupos de pesquisa, ampliação de periódicos, traduções em grandes editoras, aumento do número de eventos, número maior de professores pesquisando o tema e uma presença maior de sujeitos políticos protagonistas desse debate formando o corpo acadêmico, não mais na condição de “objeto de estudo”.

Com a interiorização das universidades publicas, esses temas passaram a circular em contextos bastante inesperados, fortalecendo o campo de estudos e promovendo maior visibilidade do debate nas mais distintas áreas de conhecimento. Mesmo que em algumas delas ainda sejamos poucos, é inegável a solidez dessa produção em âmbito nacional. Tanto que, não há no mundo, uma produção tão diversa e competente sobre as questões LGBTQIAP+ como temos no Brasil. Essa produção tem dificuldade de se capilarizar internacionalmente em razão da barreira linguística, por isso o fomento das políticas de ciência e tecnológica são determinantes, especialmente observando as assimetrias nacionais.

Em razão da particularidade desse debate, é indissociável de nossa produção acadêmica a relação com o ativismo. Quando iniciei minha militância jamais imaginaríamos que algum dia poderíamos estar na condição de docentes lutando para garantir cotas para pessoas trans na pós-graduação, por exemplo.

O midiativismo também tem contribuído para tradução de conceitos acadêmicos e popularização deles nas redes sociais. Tarefa fundamental para sairmos do apagamento histórico e alçarmos maior representatividade em espaços de poder.

Foto: Reprodução / Instagram

E sobre o conhecimento científico específico sobre a cultura e o “ativismo lésbico”, como você avalia a produção, a difusão e a visibilidade?

O ativismo lésbico brasileiro não é uníssono, como em nenhum lugar no mundo. Há diferenças políticas entre nós. Mas há um consenso tácito em relação ao fato de que há uma disseminação singular e maior da cultura e do pensamento lésbico nos últimos 5 anos, que cresceu com ajuda do midiativismo. Nossa memória vem sendo resgatada e preservada através de projetos audiovisuais, artísticos, acadêmicos e que tendem a conformar uma outra cultura musear, acadêmica e artístico-cultural.

Há um consenso tácito em relação ao fato de que há uma disseminação singular e maior da cultura e do pensamento lésbico nos últimos 5 anos, que cresceu com ajuda do midiativismo.

No entanto, essas experiências ainda são muito concentradas nos grandes centros urbanos. A periferia, o mundo rural, os sertões, as cidades de pequeno porte, precisam ser tocadas pelas ações de visibilidade para fortalecer companheiras que atuam há décadas nesses lugares, muitas vezes recebendo todas as formas de violência por serem as poucas sapatonas visíveis em suas localidades.

A presença crescente de lésbicas em cargos político-partidários eletivos também dá outros contornos políticos a produção de conhecimento lésbica. Um exemplo são os diversos dossiês em revistas acadêmicas sobre lesbianidades, assim como coletâneas reunindo produções diversas. Porém, esses importantes avanços ainda são parcos perto do vácuo histórico que a lesbofobia de Estado impôs às nossas vidas.

Também precisamos estar em alerta para uma análise interseccional das lesbianidades. É urgente compreender e reconhecer que o movimento de lésbicas no Brasil sempre foi produzido por lésbicas negras, as quais devemos profunda reverência. E essa é uma tarefa central para difusão do conhecimento lésbico, conhecer nossa história e os interditos que nos atravessaram para enfrentá-los de todos os lugares que ocuparmos, seja na academia, na política, no ativismo de ponta, nos espaços de trabalho que ocupamos, no nosso cotidiano familiar etc.

Sabemos que a identidade gay se sobrepôs a muitas contribuições históricas de ativistas lésbicas, no Brasil e no mundo. Você enxerga vetores de mudança dessa realidade nos dias atuais?

Lésbicas, travestis, mulheres e homens trans foram e ainda sofrem com a invisibilidade por conta do centramento da identidade gay. Assim como pessoas negras LGBTQIAP+ em relação às brancas e como pessoas trans em relação a pessoas cis. As hierarquias sociais são reproduzidas internamente no campo do ativismo, combater isso é um desafio que precisa ser assumido por nós de forma comprometida.

Há vetores de mudança em curso, podemos observar isso com a presença das travestis e mulheres trans nas gestões governamentais locais ou com a influência de perfis de pessoas LBT com alto engajamento nas redes sociais. Ainda assim, há uma dívida enorme do movimento com os segmentos de pessoas trans, isso deve ser um compromisso nosso. Não imagino um ativismo lésbico ético se ele não for trans inclusivo. Do mesmo modo, não é possível pensar orgulho e resistência sem as lésbicas.

Só em aliança conseguiremos enfrentar a violência política de gênero, os altos índices LGBTIfobia e a desproteção social.