Por Leonardo Fernandes

Nas ruas de Belém, durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, o colorido dos brinquedos de miriti são verdadeiros ícones da fé católica à moda amazônica. Mais do que simples objetos decorativos, essas delicadas peças de artesanato carregam a história, tradição e cultura paraense.

“É assim, o artesanato ligado à religião”, explica Dorielma Carvalho, artesã há quase 40 anos. A relação entre os brinquedos de miriti e o Círio de Nazaré vai além do comércio. Muitos fiéis fazem promessas à Nossa Senhora e as pagam carregando na cabeça réplicas em miriti: casas para quem conseguiu uma moradia, ou barcos para quem teve  um empreendimento de sucesso.

“Tem gente que faz promessa. Por exemplo, eu quero conseguir uma casa, aí ‘pega’ com a Nossa Senhora que vai andar com uma casa de miriti na cabeça”, conta Dorielma.

Os brinquedos são uma manifestação artística tradicional que reflete o universo do ribeirinho amazônico. Entre as peças mais típicas estão barcos, cobras, jacarés, bonecos dançarinos, e representações do cotidiano no interior como o pato dentro do paneiro, galinhas ciscando e até mesmo a própria Romaria do Círio, com seus romeiros e a imagem de Nossa Senhora.

O “isopor da Amazônia”

Foto: Leonardo Fernandes

O miriti, palmeira científica chamada Mauritia flexuosa, é conhecida como “isopor da Amazônia” pela leveza e suavidade de sua polpa. Comum nas áreas inundadas da região, essa palmeira esbelta pode atingir grande porte, e dela tudo se aproveita.

“O miritizeiro a gente conhece por ‘palmeira santa’. Por quê? Porque dela se aproveita tudo”, explica Dorielma. Da folha fazem-se chapéus e decorações; do fruto, doces, mingaus e vinhos que são base da alimentação ribeirinha; da casca, bijuterias que já ganharam prêmios nacionais; e dos talos, os famosos brinquedos.

Uma cadeia produtiva sustentável

A produção dos brinquedos começa no meio da várzea. Os artesãos coletam os talos (braços) das palmeiras jovens, de preferência, em um processo que respeita o ciclo da natureza.

“Você não pode tirar ele em noites de lua cheia, tem que ser noite escura, que senão apodrece”, alerta Dorielma. Após o corte, a matéria-prima fica dois dias na mata antes de ser transportada. “Você tem que cortar ele na mata, deixar dois dias, depois ir, marcar, descascar, trazer pra dentro da casa e botar ele em pé, que é justamente pra aquela resina escorrer”.

Da planta colhem-se apenas os braços, mantendo-a viva e crescendo, uma atividade sustentável que garante a continuidade do ofício. Os talos são descascados, aproveitando-se apenas o miolo. As cascas flexíveis transformam-se em cestos e paneiros, enquanto o miolo, após secar ao sol por quase um mês, é esculpido com ferramentas rústicas – facas e facões bem afiados.

“Ele tem que estar bem sequinho pra começar a confecção das peças”, explica Dorielma a técnica tradicional. Depois de esculpir as esculturas, os brinquedos são lixados para dar o acabamento e receberem a pintura. Alguns brinquedos articulados ainda passam pelo processo de montagem.

Atualmente, há uma preocupação ambiental maior. “De primeira, eles cortavam os braços de miriti, tiravam a tala para tecer o paneiro e jogavam o braço no rio. Hoje já está conscientizando eles para que possam armazenar no lugar adequado, sem descartar na natureza”, conta Dorielma.

De núcleos familiares a empreendedores

A produção é feita em núcleos familiares. Cada artesão reserva um pequeno espaço em casa transformado em ateliê, onde organiza mesas, tintas e ferramentas. “É um núcleo familiar em casa. Meus filhos também pintam, fazem a parte do acabamento”, diz Dorielma, que tem sete filhos, sendo um também artesão.

Dorielma e seu marido, Sebastião Ferreira Cardoso, trabalham em parceria há quatro décadas: “Eu comecei mais na parte da pintura, ele fazia. A parte do acabamento, a pintura, essas coisas é tudinho eu. Eu corto, mas eu prefiro pintar. Como ele não sabe pintar, ele corta, aí eu faço já a parte mais do acabamento”.

A parceria com o Sebrae trouxe qualificação: “Nós conseguimos uma qualificação melhor, a questão de acabamento, pintura, trabalhar com cliente, falar com a imprensa”.

Crescimento e reconhecimento

De aproximadamente 20 a 30 artesãos na década de 1990, Abaetetuba – município localizado a 170 km de Belém – conta hoje com mais de 100 famílias artesãs. O Miritifest, criado em 2004, reúne cultura, artesanato e saberes, sendo hoje reconhecido como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Estado do Pará, assim como os próprios Brinquedos de Miriti.

“Atualmente, nós temos seis associações de artesanato compondo o IMA (Instituto Miriti de Abaetetuba). Os que não estão em associações, se organizam em núcleos familiares. Essa é uma tradição que você vem passando de pai pra filho. Nessa edição do festival a gente conseguiu reunir 50 estandes de expositores diferentes”, explica Fausto Fernandes, responsável pela organização da 28ª Feira do artesanato de Miriti.

Durante o Círio, na praça Dom Pedro II, os artesãos montam suas barracas e ficam acampados por dias consecutivos. No dia da procissão, amanhecem com suas girândolas carregadas de brinquedos que serão vendidos entre a multidão nas ruas de Belém.

Sustento durante o ano todo 

Diferente do que muitos pensam, a produção não se limita ao período do Círio. O miriti tornou-se o “carro-forte” das famílias artesãs: “Em Abaetetuba, essas famílias se organizaram em torno do artesanato de miriti. Eles praticamente se sustentam o ano todo desse artesanato”, analisa Fausto Fernandes.

Com a COP 30 em Belém, novas oportunidades surgem. “Abaetetuba é a capital do Miriti, a gente já é referência no Estado. Mas agora a gente quer levar nossa cultura pro resto do Brasil e pro mundo. A gente tá aqui no Círio, mas já de olho na COP 30, que também vai demandar uma logística grande”, avalia.