2017 caminha para o final com a política tradicional recompondo forças. Em Brasília, Temer conseguiu se salvar e abafar a lava-jato, recobrando certa estabilidade no reino de Avilan. A realidade política segue dura, bruta, com ataques sistemáticos aos direitos sociais e aos direitos civis, com avanços da bancada ruralista, do fundamentalismo religioso e com uma dificuldade incrível de mobilizar reações que impeçam esses retrocessos. Não há dúvida de que o quadro é tenebroso e não permite sorriso nem de soslaio.

Ao mesmo tempo, do lado de fora do castelo, milhares de ativistas e pessoas interessadas em mudar a política vão se reunir para discutir caminhos, avaliar os problemas, conhecer gente com as mesmas preocupações. Pelo menos dois eventos amplos nessa linha vão acontecer antes do final do ano, a Virada Política em São Paulo nesses dias 11 e 12 de novembro, e o Ocupa Política em Belo Horizonte nos dias 8 a 10 de dezembro. Além disso, o Vamos! vai realizar pelo menos cinco atividades até o final do ano em várias partes do país.

Entre as realidades de Brasília e dessas iniciativas, de dimensões obviamente distintas entre si, há um abismo intergaláctico.

Distância enorme de objetivos, de caminhos, de valores e dos resultados que se esperam. Com um agravante: hoje há poucas linhas que a gente consiga traçar entre a realidade bruta que predomina na política e os processos mais vivos e oxigenados.

Não que não haja bons exemplos, e não à toa a experiência do Muitas, que elegeu Áurea Carolina e Cida Falabella em Belo Horizonte, é uma das que serve de base e inspiração para parte dessas atividades. Mas hoje a distância entre o que é o ‘mundo real’ da política e as iniciativas que buscam arejar esses processos ainda é abissal.

Pessoalmente me coloco no time que reconhece enorme valor nessas iniciativas de buscar oxigenação da política, especialmente aquelas que carregam, explícita ou tacitamente, valores de esquerda. Acho, contudo, que é fundamental fazer isso a partir de uma análise concreta da situação concreta. Ou seja, nosso diagnóstico não pode se descolar do que é o Brasil e sua política hoje, nem pode ser ingênuo nem autoilusório. Precisamos alimentar sonhos e utopias, mas não ilusões. Isso implica dizer que precisamos conseguir traçar linhas entre a bruta realidade e nossas utopias de transformação. Se não há linha possível entre esses dois pontos, na prática deixamos intocado o atual sistema.

Neste contexto, trago cinco pontos de diagnóstico que a meu ver apontam desafios para qualquer iniciativa de oxigenação:

1) O sistema político não está falido nem propriamente ameaçado. Embora quiséssemos que fosse diferente, o sistema político está vivo e não tem sido chacoalhado por nenhum processo de mudança substantiva. Cada vez mais, fica clara a lógica da política como braço de um empreendimento econômico de maior monta, que articula organicamente a classe política e o grande capital. Não é que a política seja toda assim, mas a política é hoje majoritariamente assim.

2) A centralidade política hoje está na luta de classes E nas opressões de gênero, raça e orientação sexual. O último ano mostrou a centralidade da luta de classes na agenda. Toda semana há novidades na articulação de interesses que afetam direitos sociais, que querem aumentar a apropriação do dinheiro público pelas elites urbana e rural e que aumentam a exploração do povo. De outro lado, está cada dia mais claro que as opressões de gênero, raça e orientação sexual são parte também central da agenda do momento no Brasil, com disputas permanentes entre os setores conservadores e progressistas. Há intersecções importantes entre essas duas dimensões, já que as opressões não são apenas questões identitárias. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ter claro que as disputas sobre gênero, raça e orientação sexual mobilizam a população num eixo e recorte diferente daquele de classe, especialmente quando são apresentadas como debates comportamentais. Ou seja, quem quer se inserir neste cenário político tem de se colocar em relação a essas duas dimensões.

3) Os valores de esquerda vivem, o PT não se oxigena, mas segue como a mais forte referência partidária do Brasil. A ideia de que devemos lutar por uma sociedade mais justa, com menos desigualdades, sustentada em direitos sociais e civis, está viva e forte. O que houve foi, sim, nos últimos, uma variação grande de confiança no partido que se propunha a ser o principal agente desta mudança. Por outro lado, pesquisas recentes mostram que o PT recuperou boa parte da perda que tinha tido na preferência partidária. Era o partido preferido de 31% da população em 2012, caiu para 9% em 2016, mas voltou para 19% em setembro de 2017. É curioso notar que não há grande diferença de preferência entre as diferentes faixas etárias. A correlação mais forte é a de renda: quanto mais baixa a renda, maior o apoio ao partido. Entre os que tem renda familiar de até 2 salários mínimos, os 19% viram 24%. O PSDB faz 4% no geral, e 3% nessa faixa, enquanto tem 11% na faixa acima de 10 salários mínimos. O PSOL tem 1% no geral e 0% na faixa de até 2 salários mínimos. Para deixar claro: isso não significa que as experiências de esquerda devam todas convergir para o PT, até porque o partido se mostra fechado e resistente à oxigenação. Significa, sim, que não podemos deixar de reconhecer que este é hoje o quadro de preferência partidária no Brasil, o que traz limites e oportunidades.

4) Em democracia de massas, não existe política sem povo. Qualquer experiência que pretenda incidir de fato na conjuntura política precisa pensar como mobiliza um conjunto representativo da população. Quanto mais enraizadas estão essas experiências, mais orgânica é essa mobilização. Mas não dá para achar que este processo é o mesmo de décadas atrás. A direita, que sempre se valeu de iniciativas fisiológicas e clientelistas, tem usado temas comportamentais para ampliar sua base de apoio, via redes sociais. Com isso eles agregam inclusive sujeitos políticos com interesses econômicos opostos às lideranças. Frente às mudanças na agenda e nas ferramentas de organização, a esquerda precisa redefinir suas estratégias e pensar como fortalece processos de formação e de organização popular para gerar avanços consistentes e orgânicos. A mobilização da população baseada no diálogo direto líder-massa é importante na dinâmica de mobilização, mas ela não politiza e não consolida perspectivas de longo prazo, portanto não é caminho para fortalecimento orgânico da esquerda.

5) A necessidade de intermediação na eleição de deputados e vereadores é o pior aspecto do atual sistema eleitoral. O sistema eleitoral para o legislativo é responsável por distorções graves no processo de representação. Entre todos os seus aspectos problemáticos, o pior é a necessidade que ele gera de intermediação na escolha do eleitor. Como são milhares de candidatos disputando a atenção dos eleitores, a campanha é completamente irracional. Mesmo os setores mais informados e politizados da sociedade costumam enfrentar dificuldades para tomar decisão. Este quadro gera um enorme empoderamento de intermediários. Em todo o país, na maior parte dos casos o voto é definido a partir da indicação de um intermediário, muitas vezes despachante de pequenos favores clientelistas. Isso é piorado pelo fato de que os partidos políticos, embora sejam o centro da decisão política no parlamento durante os quatro anos, não se apresentam com seus programas. Tem-se, em suma, um processo intermediado (o eleitor tem pouca condição de tomar a decisão sozinho) e despolitizado (decisão tomada, em boa parte, por fatores estranhos aos temas centrais do parlamento e da política). Qualquer proposta progressista de reforma política deve se preocupar em enfrentar essa distorção.

O debate é longo e tem muitas abordagens possíveis, aqui trago apenas os pontos que me parecem fulcrais para diminuir o abismo entre a realidade atual e as iniciativas que buscam oxigenar a política. O fato de a política tradicional terminar 2017 mais forte do que terminou 2016 mostra que o debate e a ação são mesmo urgentes.

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