O ministro Alexandre de Moraes retirou nesta segunda-feira (15) o sigilo da gravação do esquema de espionagem ilegal na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) durante o governo Bolsonaro. A gravação revela uma reunião entre o ex-presidente Jair Bolsonaro, o general Augusto Heleno, então ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), e Alexandre Ramagem, então comandante da Abin, discutindo uma investigação de “rachadinha” contra o senador Flávio Bolsonaro, filho do ex-presidente.

Durante a reunião, Bolsonaro e seus aliados discutem possíveis estratégias para interferir na investigação. A advogada Luciana Pires sugere buscar dados sobre pessoas envolvidas nas apurações sobre Flávio, o que, para os investigadores, indica o uso da estrutura da Abin para retaliar auditores da Receita Federal. Em um momento específico, Bolsonaro menciona José Tostes, então chefe da Receita Federal, e Gustavo Canuto, presidente do Dataprev, como possíveis aliados para obter informações e interferir nas investigações.

Resumo

  • Alexandre de Moraes retirou o sigilo sobre gravação de reunião relacionada a um esquema de espionagem na Abin durante o governo Bolsonaro.
  • Nas gravações obtidas pelo STF, Jair Bolsonaro, general Augusto Heleno, e Alexandre Ramagem discutem investigação de “rachadinha” contra Flávio Bolsonaro.
  • Advogada Luciana Pires sugere buscar dados sobre investigadores da Receita Federal envolvidos no caso de Flávio. General Heleno destaca a importância de manter a estratégia em sigilo para evitar vazamentos.

Dique espião

A advogada Luciana Pires menciona a possibilidade de um “dique” – uma ferramenta para acessar informações de funcionários da Receita envolvidos nas investigações. O general Augusto Heleno destaca a necessidade de manter a estratégia em sigilo absoluto para evitar vazamentos. A gravação também mostra Bolsonaro alertando seus aliados sobre a possibilidade de estarem sendo gravados e enfatizando que não estão buscando favores pessoais.

‘Operação abafa’

A reunião faz parte da quarta fase da operação Última Milha, que cita o áudio como evidência de tentativas de desmoralizar e afastar os auditores da Receita Federal envolvidos na investigação. O Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) havia levantado movimentações financeiras suspeitas de Flávio Bolsonaro, incompatíveis com sua renda declarada, o que desencadeou a apuração.

Além das discussões sobre a Receita, a gravação revela que Bolsonaro sugeriu envolver os chefes do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e da Receita para obter informações. Ramagem, agora deputado federal, argumenta contra envolver o GSI diretamente, afirmando que isso geraria suspeitas de interferência política e prejudicaria o general Heleno.

As advogadas presentes na reunião, Luciana Pires e Juliana Bierrenbach, também discutem alternativas para obter “provas” de irregularidades na investigação contra Flávio Bolsonaro, cogitando a via legal de acionar o Supremo Tribunal Federal (STF), embora considerassem a estratégia arriscada. Elas também planejam usar relatórios do Serpro para essa finalidade.

O caso “rachadinha” contra Flávio Bolsonaro remonta a outubro de 2020, quando o Ministério Público do Rio de Janeiro o denunciou, juntamente com seu ex-assessor, Fabrício Queiroz, e outros 15 investigados, por crimes como organização criminosa, peculato e lavagem de dinheiro. A investigação foi baseada em movimentações financeiras suspeitas de assessores, que repassavam parte de seus salários a Queiroz, beneficiando diretamente Flávio Bolsonaro.

Em 2021, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Supremo Tribunal Federal (STF) anularam as principais provas contra Flávio Bolsonaro, incluindo relatórios do Coaf e quebras de sigilo bancário e fiscal, o que levou o Ministério Público a pedir o arquivamento da denúncia. Em 2022, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro rejeitou a denúncia por falta de justa causa, decisão mantida pelo STJ em 2023.

Confira o áudio transcrito:

A reunião tem pouco mais de 1h. Poucos minutos após o início, Bolsonaro diz:

“Ninguém tá pedindo favor aqui, [inaudível] é o caso conversar com o chefe da Receita. O Tostes”.

Ele se referia a José Tostes, então chefe da Receita Federal.

Depois, Bolsonaro sugere falar com Gustavo Canuto, que era na época o presidente do Dataprev, órgão do governo que lida com dados da administração pública.

“É o zero um dos caras. Era ministro meu e foi pra lá. Sem problema nenhum. Sem problema nenhum conversar com ele. Vai ter problema nenhum conversar com o Canuto”, explica Bolsonaro.

“Eu caso [sic] conversar com o Canuto?”, questiona Bolsonaro.

A advogada Luciana Pires responde o ex-presidente:

“Sim, sim. Com um dique. Olha, em tese, com um dique você consegue saber se um funcionário da Receita [inaudível] esses acessos lá”.

Nesse momento, o então chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, diz que essa essa estratégia discutida entre ele na reunião tem que ficar fechadíssima. Ou seja, não vazar.

“Tentar alertar ele que ele tem que manter esse troço fechadíssimo. Pegar de gente de confiança dele. Se vazar [inaudível]”, afirma Heleno.

O ex-presidente Jair Bolsonaro, então, diz:

“Tá certo. E, deixar bem claro, a gente nunca sabe se alguém tá gravando alguma coisa. Que não estamos procurando favorecimento de ninguém”.

Pedido de ‘ajuda’ para Heleno

Na reunião, as advogadas cogitaram acionar o GSI para levantar possíveis irregularidades contra os servidores da Receita.

“Eu acredito, até que se isso aqui vier à tona, a gente vai ser bastante… é… atacada, mas francamente, eu não tenho o pouco nem pouco a fazer. O que é que acontece? Eu juntei aqui. Eu fiz um, um pedido, é, general. Especialmente pro GSI. Porquê? É um pedido de averiguação. Dos sistemas de inteligência que atendem à Receita Federal, mas o pedido precisa, a averiguação precisa, feita, feito pelo Serpro”, afirmou a advogada Juliana Bierrenbach.

Em seguida, o então chefe do GSI, general Augusto Heleno, que também estava na reunião, perguntou:

“Quando vocês pediram?”

E Juliana respondeu:

“Não estou pedindo, estou trazendo hoje”.

Mais à frente na reunião, a advogada Luciana Pires discute outras opções para a ação da defesa que não fosse uma ajuda do GSI. Ela cogitou a via legal de acionar o STF.

“Qual seria a outra opção que a gente poderia fazer sem ser através da GSI? Eu entrar com uma reclamação no Supremo, porque a forma, em tese, o relator é o Gilmar Mendes”, diz a advogada.

Mas em seguida ela reflete que não seria uma boa estratégia, do ponto de vista da defesa.

Ramagem, que gravou a reunião, afirma que não é boa ideia envolver o GSI, porque os dados da Receita não poderiam ser acessados pelo GSI sem que isso gerasse suspeita de interferência política. Ramagem argumenta que não pegaria bem para Heleno.

“Politicamente, o general Heleno vai ser crucificado, como pessoalidade em prol do Flávio Bolsonaro. Acredito que não seja o melhor caminho”, diz o então diretor da Abin.

“O diabo sabe o que a gente faz”

Em outro ponto da reunião, o ex-presidente Jair Bolsonaro diz que não é pra ninguém achar que eles estão tentando dar um “jeitinho” na investigação. Veja a transcrição da PF:

Jair Bolsonaro: “[inaudível] Nenhuma pessoa aqui fez qualquer conversa pra ‘vamo dar um jeitinho’. Nada, nada, nada.”

Augusto Heleno: “Não tem essa conversa.”

Luciana Pires: “O diabo sabe o que a gente faz. O diabo [inaudível].”

Augusto Heleno: “[inaudível] Tem gente que fica triste é, que não tem esse tipo de conversa aqui.”

Advogadas queriam ‘prova’ de que investigação era irregular

A gravação mostra também que as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach queriam encontrar supostas “provas” de que a investigação contra Flávio Bolsonaro era irregular. Para isso, cogitavam envolver órgãos oficiais na apuração contra agentes da Receita.

Juliana Bierrenbach: Então, o que eu tenho? Eu não tenho uma prova de que foi feito isso com o Flávio.

Luciana Pires: A gente quer essa prova.

Juliana Bierrenbach: Qual é a prova possível de ser produzida? O Serpro, ele produz.

Juliana Bierrenbach: Um relatório. Eu trouxe um arquivo de exemplo, que é uma apuração especial do Serpro. Chama apuração especial do Serpro. Segundo o que me informaram.