Boiada e a privatização: advogada denuncia investidas do governo federal contra o meio ambiente
Em entrevista para a Articulação Nacional de Agroecologia, a advogada Naiara Bittencourt denuncia as flexibilizações em relação às políticas ambientais do governo federal
A questão ambiental é uma das muitas preocupações dos setores progressistas e de direitos humanos em relação ao atual governo. O antigo ministro do meio ambiente, Ricardo Salles, que pediu demissão após muitas polêmicas, era um dos ícones do bolsonarismo. Ficou célebre sua declaração em uma reunião interna de “passar a boiada” em relação à flexibilização dos controles sobre o agronegócio, a exploração de madeira e minérios, dentre outras atividades favorecidas pelo modelo de desenvolvimento pregado pelo presidente da República Jair Bolsonaro.
Para tratar desses temas, entrevistamos a advogada Naiara Bittencourt, da organização Terra de Direitos, que atua na defesa, promoção e efetivação de direitos. Ela é doutoranda em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), integrante da Campanha Permanente contra os Agrotóxicos e Pela Vida e do Coletivo de Articulação Política (CAP) da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Na conversa, ela fala como os indígenas e os quilombolas têm se organizado e resistido aos ataques sofridos pelo atual governo, sobre os retrocessos ambientais nos últimos anos, as perspectivas eleitorais nos próximos meses e as expectativas em relação à promoção da agroecologia.
Qual a sua avaliação sobre as flexibilizações legislativas e outras iniciativas governamentais que têm reflexos sobre o meio ambiente e sobre os órgãos de fiscalização, controle e assessoramento relacionados a esse tema
São retrocessos em várias escalas, vários atos normativos foram aprovados, por exemplo: desde mudanças em portarias, instruções normativas, resoluções que facilitam o desmatamento, o registro e o uso de agrotóxicos, a apropriação privada da biodiversidade etc. Parques estaduais e nacionais em unidades de conservação tiveram seu regime jurídico alterado facilitando a governança para as empresas privadas, e também a facilitação de titularização de terras e territórios individuais enquanto dificultam as coletivas, como assentamentos da reforma agrária, terras indígenas e territórios quilombolas. Também a flexibilização e fragilização dos órgãos de fiscalização e controle, especialmente retirando e diminuindo a atuação dos servidores nessas esferas e, principalmente, os recursos orçamentários para esses órgãos. E ainda criminalizando ou perseguindo os servidores que vão mais a fundo nas suas atuações administrativas de responsabilização de agentes violadores. Há o campo ideológico, o avanço de práticas discursivas para que se possibilite a destruição ambiental. Há uma narrativa de que esses órgãos atrapalham o desenvolvimento nacional, especialmente o agronegócio etc. Esses setores ficaram muito mais confortáveis, elevando os conflitos socioambientais.
Você citou os indígenas e quilombolas, que tradicionalmente protegem a natureza, e eles são acompanhados pela Funai e a Fundação Palmares. Você tem acompanhado os trabalhos desses órgãos?
É possível mencionar que a Fundação Palmares foi praticamente inabilitada, inclusive com discursos racistas emitidos pelos seus próprios gestores. A página Quilombolas contra Racistas traz alguns desses discursos, publicizados, inclusive, pelo presidente do órgão. No governo Bolsonaro, não houve a titulação dos territórios quilombolas como atos do poder Executivo, só com ações judiciais específicas, como aqui no Paraná, no caso Paiol de Telha, que a Justiça Federal determinou que o Incra avançasse na titulação do território, ainda que parcial. Mas, no geral, houve um enfraquecimento brutal desses órgãos e a ocupação de setores absolutamente contrários a qualquer avanço de direitos dessas comunidades.
Saindo um pouco das denúncias, o que temos de agenda positiva feita pelos movimentos sociais?
Houve uma rearticulação, especialmente de visibilidade, de resistência dos povos indígenas e comunidades tradicionais. Ocorreram dois eventos bastante importantes, um deles massivo, que foi o Acampamento Terra Livre, que se configura um dos maiores atos políticos de resistência contra esse governo. Há também uma articulação muito grande e decisões judiciais da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB) com o reconhecimento, inclusive no Supremo Tribunal Federal (STF), de que ela pode peticionar sem ter personalidade jurídica. Um reconhecimento formal de que é uma articulação que pode reivindicar direitos, conforme indica a Constituição Federal. E no dia 10 de agosto houve o ato Aquilombar, em Brasília (DF), que foi uma grande marcha das comunidades quilombolas, organizada pela CONAQ [Coordenação Nacional de Articulação de Quilombos]. E está para acontecer a Marcha das Margaridas, que será o próximo grande ato de resistência. Ocorreram também resistências territoriais bastante fortes, como os indígenas retomando terras no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mesmo recebendo ofensivas, como no massacre de Guapo’y. O fato destes povos [os indígenas] continuarem existindo nesse governo já é um ato de resistência, porque o tanto que se avançou de extermínio é algo não vivenciado na democracia brasileira, ao menos após a ditadura militar.
Quais as consequências dessas decisões políticas para a produção de alimento, para a alimentação saudável e para a agroecologia?
Não é possível produzir qualquer alimento sem acesso à terra. Então, [o acesso à terra] é um direito fundamental básico para as populações do campo, das águas e das florestas. Ter acesso e reconhecimento dos seus territórios como direito básico é fundamental, mas existem outras ofensivas que esses povos vêm sofrendo, como o “Titula Brasil” que desmobiliza a organização coletiva e reconcentra, a médio prazo, a estrutura fundiária brasileira. Houve um enfraquecimento institucional das políticas públicas para a produção de alimentos. Veja o que aconteceu com o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), que durante um tempo possibilitou a aproximação do campo e da cidade, da agricultura familiar e dos povos tradicionais com as instituições que atendem as populações mais pobres. O PAA foi fundamental porque projetou uma perspectiva de geração e criação de renda, garantia de estabilização para esses setores, ainda que com valores pequenos anuais por família. Quando esse programa se desestrutura, seja em questões orçamentárias ou operativas e burocráticas, essas famílias perdem a projeção de permanência no campo. As comunidades tradicionais, mesmo já tituladas, não têm qualquer acesso a políticas de crédito e fomento à produção. A assessoria técnica e extensão rural (ater) das organizações foi desmontada, restando somente as instituições públicas, que estão completamente desestruturadas. As mesmas que também recomendam o pacote tecnológico da revolução verde, com sementes transgênicas e agrotóxicos, uma prática que difere da produção agroecológica. Fazer agroecologia é um ato de resistência.
Quais outras políticas públicas, além do PAA, estão ameaçadas?
Alguns programas foram desmontados, como o PAA, que se tornou Alimenta Brasil e não tem mais o aspecto de fomento com a organização da agricultura familiar. Vemos também uma tentativa de redução do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), que garante que, pelo menos, 30% dos alimentos ofertados nas escolas sejam comprados da agricultura familiar. O governo federal, inclusive, vetou o reajuste de 34% do Pnae. Isto é, temos uma inflação altíssima sem reajustar o valor pago às agricultoras e aos agricultores, desestimulando aprodução desses alimentos. Fica a cargo de cada agricultora e agricultor resolver toda e qualquer questão: comercialização, regularização fundiária, assistência técnica etc. Há ainda a questão da educação. Vimos que várias turmas do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) se estruturaram formando advogadas/os, agrônomas/os, veterinárias/os etc. Hoje, há uma desestruturação clara do programa, desestimulando a formação no campo.
Quando se tem esse combo de destruição da possibilidade de titulação ou reconhecimento territorial, como garantia da reforma agrária, por exemplo, somado à ausência de acesso ao crédito, à produção e distribuição de alimentos, enquanto o Brasil tem 33 milhões de pessoas passando fome, além da dificuldade no desenvolvimento de educação e assistência técnica, nós temos essa população empurrada para o êxodo rural e a marginalização urbana. Por outro lado, há a ocupação dessas terras pelo agronegócio. Vimos uma expansão da área plantada de soja como nunca foi visto antes no país, especialmente no Cerrado.
O que vem sendo debatido nos movimentos em relação às perspectivas eleitorais, quais são os desejos e leituras sobre o que está por vir?
A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) elaborou uma carta de reivindicações e propostas que podem ser exigidas nas esferas estaduais e na federal. A Campanha Contra os Agrotóxicos e pela Vida lançou em agosto a sua carta. Há outros exemplos dessas Os movimentos sociais têm a expectativa de trabalhar para um governo progressista, do presidente Lula, mas entendendo que, mesmo que o resultado da eleição seja considerado positivo, ainda haverá muito o que ser construído. Especialmente porque será um governo de coalização e composição, ou seja, haverá um enfrentamento interno bastante complexo. Além disso, é preciso considerar que há um nível muito grande de militarização da sociedade civil. As milícias não somente avançaram no campo urbano, mas também na zona rural. As populações estão armadas e qualquer sentido de retomada territorial, ocupação de terras para a reforma agrária, atos públicos em busca de direitos, serão enfrentados pela sociedade civil militarizada e armada, que luta contra o projeto de desenvolvimento dessas populações, que, nessas condições, estarão mais vulneráveis.
E quais são as avaliações no caso do Bolsonaro se reeleger?
Um eventual segundo governo Bolsonaro vai destruir ainda mais o pouco que resta de direitos ou conquistas territoriais. Inclusive porque tem a possibilidade de reeleição dele, então o avanço e destruição em relação a garimpo, mineração, uso de agrotóxicos, flexibilização normativa, titulação individual, desmatamentos, queimadas, isso tudo vai se acirrar se houver uma reeleição. Fora a militarização, o extermínio, as chacinas, a redução do direito ao protesto e à mobilização, direito de associação e organização. Temos um risco muito sério e grave democrático, há um receio muito grande, inclusive em relação à vida dessas populações.
Você tem acompanhado os índices de violência no campo nos últimos anos?
A Comissão Pastoral da Terra [CPT] identificou que no último ano o número de assassinatos no campo aumentou 75%. Os conflitos são fruto desse cenário de necropolítica. Especialmente o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH) , que é um dever de proteção estatal a quem milita ou luta por essa causa, encontra uma série de dificuldades de operação. A proteção de defensores de direitos humanos ficou a cargo da sociedade civil, que não tem a mesma estrutura, possibilidade de proteção e responsabilidade pública. É uma questão fundamental do Estado proteger as pessoas que estão ameaçadas, e o Brasil é o quarto país que mais mata defensores socioambientalistas no mundo. As populações ficam com muito mais medo de realizar ações de enfrentamento, estão muito mais expostas e silenciadas pelo risco de perda da própria vida.
E onde entra a questão da comunicação nesse contexto?
As organizações e movimentos sociais perceberam que é preciso denunciar de uma forma mais contundente, tanto para a população em geral quanto para as suas bases em particular, o que está ocorrendo, e as redes sociais têm avançado muito nisso. Durante a pandemia da Covid19, o encontro presencial foi dificultado para evitar aglomerações e reduzir o risco de contágio pelo coronavírus . Então, de alguma forma, as organizações e movimentos sociais se reinventaram do ponto de vista de instrumentos e formas de comunicação. Também houve a omissão de políticas de combate à fome e de redução da pobreza nesse governo. As organizações e movimentos foram chamados a assumir um papel mais ativo de solidariedade. Na entrega de alimentos, relação campo e cidade, políticas sociais movimentadas pela sociedade civil… Tudo isso resultou na quebra de barreiras, inclusive em relação à mídia hegemônica. Novas formas e atores surgiram no campo da comunicação nesse período.
E a flexibilização das legislações sobre os agrotóxicos?
Na questão normativa, houve alterações significativas, como a tentativa de aprovar uma portaria que autorizava o registro tácito de agrotóxicos. A portaria foi derrubada no Supremo Tribunal Federal (STF) entendendo que a proposta é inconstitucional e colide com o sistema normativo brasileiro. Por outro lado, em 2021, houve alteração no decreto que regulamenta a utilização de agrotóxicos, tornando mais fácil e ágil o registro de novas substâncias. Esse é o governo que mais registrou e liberou agrotóxicos na história do Brasil. Deslocou-se a competência de servidores públicos, que estavam em outras áreas, para acelerar o registro de agrotóxicos. Houve uma reorganização administrativa do Ministério da Agricultura nesse sentido, afirmada pelo próprio órgão que a liberação de agrotóxicos seria uma pauta prioritária. E há outras medidas de flexibilização, por exemplo, diminuiu-se a distância da pulverização aérea de agrotóxicos na cultura da banana, inclusive como uma reivindicação do presidente Bolsonaro para a ministra Tereza Cristina. Não houve monitoramento de resíduos de agrotóxicos em alimentos desde 2018. Então, já faz tempo que esses dados não são publicados. Houve também a regulamentação da pulverização de agrotóxicos por drones, deixando muito fácil e com poucos requisitos de aplicação. Essa regulamentação de pulverização aérea por drones estabelece, por exemplo, uma distância de 20m de uma moradia, o que facilita a deriva.
Você comentou que o novo ministro do meio ambiente, embora não tenha a mesma visibilidade do anterior, tem a mesma perspectiva política. Qual a avaliação sobre ele?
O ministro Salles era uma figura bastante polêmica. Inclusive, se expunha muito midiaticamente, desde as declarações internas nas próprias reuniões ministeriais, com afirmações como “passar a boiada”, como também públicas, de apoio a setores ruralistas. Não tinha receio de dizer aquilo que realmente se praticava nesse governo: negativo ao setor ambiental e positivo aos setores que visam essa flexibilização e expansão de área plantada para o agronegócio. Quando o Salles deixou o ministério, com pressão pública de denúncias de improbidade administrativa e descontentamento do mercado internacional em relação aos produtos brasileiros, assumiu Joaquim Leite, que não deixou de fazer nenhuma ação de desmonte socioambiental já planejada no governo Bolsonaro. Continua o enfraquecimento dos órgãos de fiscalização e controle, de efetivação de direitos e proteção ambiental, continuam os avanços dos atos administrativos que facilitam o desmatamento e as queimadas, a expansão de áreas plantadas do agronegócio, a diminuição da fiscalização e o não cumprimento de nenhum dos acordos internacionais que o Brasil já assinou e ratificou. Só que ele é uma figura menos exposta, então, de alguma forma, toda essa pressão midiática se reduziu, mas os atos de destruição ambiental permanecem. Percebemos também uma expansão da privatização da biodiversidade e dos recursos naturais, avanços de programas como o “Adote um Parque”, que é justamente a governança de unidades de conservação pelo setor privado. É quase uma venda de ativos ambientais para o mercado internacional, inclusive com várias empresas se apropriando disso, como a Coca Cola, e Heineken, o Carrefour e outras grandes empresas com capital estrangeiro se apropriando e gerindo esses recursos brasileiros. Inclusive, com comercialização de ativos ambientais na bolsa de valores. Isso também pode facilitar a comercialização do patrimônio genético brasileiro e dos conhecimentos tradicionais associados às comunidades tradicionais.
O que mais envolve essa discussão de biodiversidade?
Temos denunciado muito essa possibilidade de retirada do Brasil na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], que garante aos povos indígenas e comunidades tradicionais a consulta de uma forma livre e prévia quando têm seus territórios e conhecimentos tradicionais ameaçados. Isso tem garantido muitas resistências para essas comunidades, como por exemplo, a resistência a mega empreendimentos que agora passam pela necessidade de consulta. Houve uma ameaça da Federação da Indústria do Pará, assim como da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Confederação Nacional da Agricultura (CNA), para que o Brasil se retire dessa Convenção. O próprio Bolsonaro chegou a afirmar que faria isso. Hoje, está tramitando no Congresso Nacional um projeto de lei para que o Brasil denuncie a Convenção, e isso é algo que temos bastante preocupação, porque esse é um instrumento fundamental de garantias de direitos para esses povos.