As estátuas do nosso descontentamento
É neste caldo de poder injusto que aumenta o racismo, a negação de outras histórias, a violência contra as mulheres e a homofobia. É contra este poder que se dirige a contestação das estátuas. Esta contestação dá um relevo especial à luta antirracista e anticolonial, mas não esqueçamos que ela é tão importante quanto a luta antissexista e anticapitalista.
As estátuas parecem-se muito com o passado, e é por isso que sempre que são postas em causa nos viramos para os historiadores. A verdade é que as estátuas só são passado quando estão tranquilas nas praças, partilhando a recíproca indiferença entre nós e elas. Nesses momentos, que por vezes duram séculos, são mais intencionalmente visitadas por pombas do que por seres humanos. Quando, no entanto, se tornam objecto de contestação, as estátuas saltam do passado e passam a ser parte do nosso presente. Doutro modo, como poderíamos dialogar com elas e elas connosco? Claro que há estátuas que nunca são contestadas, quer porque pertencem a um passado demasiado remoto para saltar para o presente, quer porque pertencem ao presente eterno da arte. Estas estátuas só não estão a salvo de extremistas tresloucados, caso dos Budas de Bamiyan, do século V, destruídas pelos taliban do Afeganistão em 2001.
As estátuas que dão este salto e se oferecem ao diálogo são parte do nosso presente e são contestadas porque representam contas que não foram saldadas, destruições e injustiças que não foram reparadas. Quem as contesta não lhes pede contas a elas nem exige reparações delas. As contas têm de ser feitas e as reparações têm de ser dadas por quem herdou e detém o poder injusto que as estátuas representam. Sempre que o poder que as fez erigir foi justa ou injustamente derrotado, as estátuas foram retiradas prontamente sem nenhuma comoção e até com aplauso. Se é tão forte o movimento actual de contestação às estátuas, iniciado pelo movimento #blacklivesmatter, isso deve-se à continuidade no presente do poder que no passado originou as destruições e as injustiças de que as estátuas são involuntárias testemunhas. E se o poder continua, continuam as destruições e as injustiças. A contestação é contra estas.
E que poder é esse? No contexto europeu e eurodescendente, esse poder é o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado, três formas de poder articuladas que dominam há quase seis séculos. A primeira é do século XV e as duas outras existiram muito antes, mas foram reconfiguradas pelo capitalismo moderno e postas ao serviço deste. As três estão de tal maneira articuladas que nenhuma delas existe sem as outras. O que consideramos passado é assim uma ilusão de óptica, uma cegueira em relação ao presente. O colonialismo é passado? Não. O que passou (e não totalmente, como mostram os casos do Sara ocidental, da Papuásia ocidental e da Palestina) foi uma forma específica de colonialismo, o colonialismo histórico, por ocupação territorial por potência estrangeira. Mas o colonialismo continuou até hoje sob outras formas, desde o neocolonialismo ao saque dos recursos naturais das ex-colónias e ao racismo. Se nada disto fosse parte do nosso presente, as estátuas estariam sossegadas e entregues às pombas.
Para sermos mais concretos, se na grande Lisboa não houvesse bairros da Jamaica, se a cor de pele das populações mais expostas ao vírus não fosse a que é e fosse igual à dos que estão em teletrabalho, se não houvesse brutalidade policial racista nem grupos neonazis infiltrados nas suas organizações profissionais, as estátuas estariam em seu sossego pétreo ou metálico. O patriarcado não está a passar com todas as leis e políticas em defesa da igualdade de género? Não. Se os movimentos feministas tivessem pleno êxito, não estaria a aumentar o feminicídio. Nem a pandemia teria feito disparar em todos os países a violência contra as mulheres. O capitalismo não terminou? Não. Esta é talvez a mais perversa ilusão, propagada pelos media, pelos economistas e por muitos cientistas sociais. Para muitos, o capitalismo era uma ideologia; agora há mercados, colaboradores, empreendedores, economia de mercado, PIB, desenvolvimento. Em verdade, o capitalismo tem vindo a incrementar a sua capacidade de produzir injustiça nos últimos 40 anos, bem reflectida na erosão dos direitos dos trabalhadores, na estagnação dos salários (nos EUA, desde 1969). É neste caldo de poder injusto que aumenta o racismo, a negação de outras histórias, a violência contra as mulheres e a homofobia. É contra este poder que se dirige a contestação das estátuas. Esta contestação dá um relevo especial à luta antirracista e anticolonial, mas não esqueçamos que ela é tão importante quanto a luta antissexista e anticapitalista.
As estátuas não terão sossego enquanto estas formas de poder existirem, sobretudo com a virulência que têm hoje. E as estátuas só parecem alvos inocentes e desfocados porque domina hoje a política do ressentimento: como deixámos de conhecer as causas do descontentamento, investimos contra as suas consequências. É por isso que o operário norte-americano, branco, empobrecido pensa que o seu pior inimigo é o operário imigrante, latino, ainda mais empobrecido que ele. É por isso que a classe média europeia, temerosa de perder o que há pouco conquistou, pensa que os seus piores inimigos são os imigrantes e os refugiados. Enquanto este poder subsistir, se quem o detém tiver alguma consciência histórica e até estiver disponível para fazer concessões, deveria ter a prudência de recolher ordeiramente todas as estátuas e construir um museu para elas. Pediria então a artistas, escritores e cientistas do país e dos países que tão levianamente consideramos irmãos para construírem diálogos interculturais com as estátuas e fazer disso uma criativa pedagogia da libertação. Quando isso ocorrer, o passado irá saindo do presente pela porta principal.
E há boas condições para fazer isto porque os povos ofendidos, além de terem resistido a tanta humilhação, são criativos e até são capazes de reconhecer que o poder que os ofendeu também se quer resgatar. Conto duas histórias da minha experiência de investigação como sociólogo. Em 2002, fazia trabalho de pesquisa na ilha de Moçambique, no Norte do país, quando me contaram a primeira história. Há uma estátua de Luís de Camões na ilha, colocada no tempo colonial. Com as mudanças turbulentas da independência em 1975, a estátua foi retirada e guardada nos armazéns da capitania. Entretanto, deixou de chover anos a fio na ilha. Os velhos sábios da ilha reuniram-se, fizeram os seus rituais e chegaram à conclusão de que a falta de chuva talvez se devesse à retirada intempestiva da estátua. Pediram que a estátua fosse reposta e o Camões lá está, olhando para imensidão do Índico e trazendo a chuva que enche a cisterna. A estátua de Camões e a sua história foram assim reapropriadas pelos moçambicanos.
A segunda história ocorreu no dia 24 de Julho de 2014, quando os descendentes dos meninos indígenas que estão na estátua do padre António Vieira visitaram o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Eram nove líderes indígenas representantes dos povos guajajara, macuxi, munduruku, terena, taurepang, tukano, yanomami e maya, a maior delegação de sempre de indígenas brasileiros na Europa. Vinham agradecer a minha intermediação junto do Supremo Tribunal Federal do Brasil na demarcação da terra indígena da Raposa Serra do Sol. Sem desprimor para a Universidade McGill do Canadá, que iniciou a lista, nem para as 18 universidades que se seguiram a conceder-me graus de doutor honoris causa, eu considero o cocar indígena e o bastão de mando que me foi concedido na cerimónia como uma das honras mais preciosas. Quem se enganou foi a estátua do padre António Vieira, porque nos faz crer que aqueles meninos ficaram crianças até hoje. E há muito boa gente que continua a pensar o mesmo.