Por Natanael Santos

Me descobrir enquanto um homem negro foi um processo muito lento. A primeira vez em que me entendi como parte da comunidade foi em 2018, quando ouvi o “Bluesman”, do Baco. Lembro de como as canções mexeram tanto com a minha percepção de realidade que passei dias escutando o álbum no repeat. Foi o primeiro CD de rap nacional que eu ouvi. Eram letras que mexiam comigo e expressavam de forma clara muitos sentimentos confusos que eu mesmo tinha com relação à minha própria realidade na época.

Sou uma pessoa muito musical, é impossível que passe mais de uma hora do meu dia sem cantar alguma coisa. Mas, apesar de vir de uma família preta, tive pouco contato com as expressões culturais do povo preto. Nossos almoços no domingo não eram embalados por samba ou pagode, e sim pelo rock e baladas dos anos 1990. Até hoje sei toda a discografia do Queen, mas o único samba que eu conheço é “Cheia de Manias”.

Penso que essa sensação de estar à margem vem principalmente do fato de ser PCD, e como as expressões culturais do povo preto são muitas vezes relacionadas à dança, ao movimento, eu por muito tempo pensei que não havia lugar pra mim. Sempre soube que eu era negro, mas não me sentia parte do todo.

Então, quando aos 21 anos de idade, eu ouço, por recomendação de um amigo, um álbum em que um homem preto discorre não somente sobre a força, mas também sobre a tristeza, a alegria e principalmente sobre o pertencimento, isso mexe em um lugar muito íntimo meu. Foi a partir daí que conheci, de fato, a obra de tantos outros artistas que falavam sobre esse lugar de sentimento que muitas vezes não é associado à figura do homem negro.

E então, no mesmo ano, por intermédio desse mesmo amigo, retomamos o contato com todos os amigos negros que tínhamos na época do ensino médio e formamos um grupo novamente. Começamos a sair todos juntos, a frequentar locais que antes achávamos não serem os nossos (muitas vezes sendo os únicos clientes pretos), e eu começo a me aproximar mais da minha própria cultura. Foi inclusive por intermédio de uma amiga que faz parte desse grupo, que, em 2021, já com 24, fiz box braids pela primeira vez. Foi um processo muito importante pra mim, pois refletia visualmente a minha mudança de pensamento e como depois de anos me sentindo incomodado com o meu cabelo, eu finalmente estava feliz com ele.

Sendo uma pessoa com deficiência, negro e LGBT, muitas vezes me sinto um pouco à margem de tudo. Como eu costumo dizer aos meus amigos mais próximos: “quanto mais locais de fala, menor a sensação de pertencimento”.

São muitas as questões e anseios que me trespassam e, como todo mundo, eu sigo aprendendo a lidar com todos eles, mas hoje eu me sinto uma pessoa mais capaz de entender o meu lugar e como ocupá-lo. Para além do meu papel coletivo, me sinto cada vez mais consciente de quem sou enquanto indivíduo. Assim como diz a letra de BB King, música de encerramento do “Bluesman”:

“Não sou legível, não sou entendível
Sou meu próprio Deus, meu próprio santo, meu próprio poeta
Me olhe como uma tela preta, de um único pintor
Só eu posso fazer minha arte
Só eu posso me descrever
Vocês não têm esse direito
Não sou obrigado a ser o que vocês esperam
Somos muito mais
Se você não se enquadra ao que espera
Você é um Bluesman.”

*Natanael Santos (@pqp.natan) é formado em Jornalismo pela Universidade de Franca, um jovem negro, PCD e LGBT, da cidade de Divinópolis, Minas Gerais, apaixonado por livros e música, e jogos eletrônicos.