Belo Monte: quase dez anos depois, pescadores e famílias inteiras ainda buscam reconstruir suas vidas
“A boniteza daqui acabou. Quando a gente nasce, a gente já sonha em segurar o remo, mas agora não dá mais pra bancar a despesa da pesca”, afirma pescador
Sobre a hidrelétrica de Belo Monte, biólogos e pescadores concordam e afirmam a mesma coisa, cada um na sua forma de explicar: a usina expulsou o peixe do rio. O represamento da água para a produção de energia nos municípios de Vitória do Xingu, Altamira e Brasil Novo é tema de inúmeros trabalhos de pós-graduação desenvolvidos no Pará e no Brasil. E, mais do que isso, é motivo de processos judiciais envolvendo os povos tradicionais e originários, que tiravam do Rio Xingu seu sustento e, principalmente, sua existência e identidade que era simbolizada pelo rio.
Em reportagem produzida pela Mongabay, uma agência de notícias voltada para conservação e ciência ambiental, foram ouvidos pescadores, estudiosos e a própria Norte Energia, consórcio de empresas responsável pela construção de Belo Monte, sobre como a vida tanto da fauna e flora quanto das pessoas daquelas localidades mudaram completamente após a construção da hidrelétrica.
Toda essa linha de acontecimentos evoluiu a partir da quebra de uma cadeia natural que se desenvolvia no Rio Xingu. A ictiocoria — dispersão de frutos e sementes por parte de peixes frugívoros — foi o principal processo que se encerrou com a barragem de Belo Monte. Da mesma forma, o peixe que se alimenta de outros peixes deixou seu território também em busca de alimento. E, por último, o pescador precisou partir em busca desses peixes. Uma cadeia de nutrição que deixou de existir, mas que trouxe consequências financeiras e existenciais para o povo do rio.
Consultada pela Mongabay a respeito dos estudos de impacto, a Norte Energia respondeu que “o projeto de engenharia de Belo Monte foi concebido de forma a priorizar o meio ambiente e a reduzir o impacto na região, contemplando a contribuição de questionamentos das comunidades e dos ambientalistas. Essa concepção garantiu que nenhuma terra indígena fosse alagada pelo empreendimento, ao tempo que estabeleceu um trecho do rio, conhecido como Volta Grande do Xingu, em que a vazão seria reduzida. Esse trecho compreende cerca de 100 km do Rio Xingu, que tem cerca de 1.800 km de extensão.”
O pescador conhecido como Mambira, cujo nome é Geraldo Costa dos Santos, expulso do rio que lhe dava sustenta, relata que a fêmea do pacu está seca, sem gordura e sem saída para venda e consumo:
“A boniteza daqui acabou. Quando a gente nasce, a gente já sonha em segurar o remo, mas agora não dá mais pra bancar a despesa da pesca”, lamenta. “A gente sabe pescar em água doce e correnteza. Com a água parada, só é pau seco e não tem o que o peixe comer. Essas frutas, sarão, caferana, é tudo fruta que eles comem e que não têm mais. Não tem mais condições.”
O Ministério Público Federal (MPF), por sua vez, sustenta que a construção da hidrelétrica causou a morte de mais 85 mil peixes — o equivalente a quase 30 toneladas — entre 2015 e 2019, destroçados ao se aproximarem das turbinas de Belo Monte. Em denúncia apresentada em 2021, o MPF acusa a Norte Energia de agir com dolo, ou seja, maneira intencional, descumprindo a determinação do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) de suspender a operação até que se apresentasse um “plano efetivo de mitigação de impactos à ictiofauna.”
Não bastasse isso, a Norte Energia se propôs a organizar a transição do pescador para o ofício de agricultor e se comprometeu a liberar apetrechos e estrutura para a produção de roças e hortas domésticas para 785 grupos familiares de pescadores identificados. Prometeu a execução de tanques de piscicultura para cada colônia de pescadores e veículos para cada colônia que fosse trabalhar na produção familiar. Segundo a empresa, esse material foi entregue conforme o previsto, mas, em audiências públicas promovidas pelo MPF em agosto de 2022, os pescadores recusaram os kits.
Os pescadores foram retirados da beira do rio e de suas casas para serem remanejados para os chamados Rucs, Reassentamentos Urbanos Coletivos, bairros construídos com uma estrutura parca e incapaz de manter a sociabilidade de uma classe que antes era acostumada com o rio em frente às suas casas e que, de repente, tem de conviver com a distância, a falta d’ água em suas torneiras e a falta da saúde e educação para seus filhos. Existem seis Rucs em Altamira, bairros periféricos sem estrutura social e sem políticas públicas. Por causa de Belo Monte, o pescador não deixou apenas de pescar. Ele deixou de ser pescador.
Por causa de Belo Monte, o pescador não deixou apenas de pescar. Ele deixou de ser pescador.
“O ruim disso tudo é que hoje eu tô longe do rio e não vale mais a pena pescar pra ganhar dinheiro porque eles afastaram a gente da água e o peixe foi embora pra longe”, diz Eliza de Assis Ribeiro, que ainda vende peixe na porta de sua casa e consegue uns R$ 300 por mês. “A gente gasta mais pra trabalhar do que pra ganhar dinheiro com a pesca”, diz.
Segundo a Norte Energia, a empresa está “realizando o processo de retorno de 322 famílias ribeirinhas para pontos localizados na Área de Preservação Permanente (APP) do reservatório, com acompanhamento do Ibama e também do Conselho Ribeirinho e seu grupo de apoio. Cerca de 40% dessas famílias já foram reassentadas e 7% estão em andamento”.
O Conselho Ribeirinho e entidades associadas alegam que “nenhuma família foi plenamente reassentada, visto que não tem acesso às áreas e condições previstas no projeto”, conforme consta em uma Carta em Defesa do Território Ribeirinho enviada em 8 de março deste ano a órgãos governamentais. “A área destinada ao reassentamento ribeirinho já foi reduzida de cerca de 32 mil hectares para cerca de 9 mil, fruto de estudos técnicos detalhados, alterações na linha da APP variável do reservatório e redução das áreas destinadas ao uso familiar, inferior ao módulo fiscal mínimo previsto para o estado do Pará”, diz a carta, assinada por 28 entidades.
Via Mongabay