Autismo: diagnóstico tardio e estigmatização prejudicam a vida de mulheres no espectro
Dois de abril é o Dia Mundial de Conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA). O dia tem o objetivo de visibilizar, incluir e debater as questões referentes às pessoas no espectro.
Por Miranda Perozini
Dois de abril é o Dia Mundial de Conscientização do Transtorno do Espectro Autista (TEA). O dia tem o objetivo de visibilizar, incluir e debater as questões referentes às pessoas no espectro. Contudo, ainda há muito o que entender e desenvolver quando o assunto é assistência, diagnóstico e pesquisa sobre o transtorno no Brasil, que ainda não possui os próprios dados em relação à quantidade de pessoas no espectro. Quando o assunto é diagnóstico, muitos grupos de indígenas, negros e principalmente, mulheres, foram negligenciados durante o processo, feito para diagnosticar especificamente homens.
O neuropsicólogo e doutor em psicologia Mayck Hartwig explica, para a coluna de Drauzio Varella, que, historicamente, os métodos de diagnóstico e pesquisas de autismo eram feitos focados em homens. “Historicamente, nas evidências que a gente tem de autismo, o marcador era para homens, inclusive os testes foram feitos e criados em cima de uma demanda de homens”, explica.
Este pode ser um dos fatores para que, segundo o CDC, o TEA seja quatro vezes mais comum em meninos. Segundo a neuropsicóloga e especialista em autismo, Marina Almeida, o marcador de neurodesenvolvimento das meninas começa na puberdade, enquanto dos meninos, na infância, o que dificulta o diagnóstico de mulheres com autismo na infância, o momento mais adequado para isso.
Por terem uma cognição social mais bem desenvolvida, mulheres possuem uma melhor percepção social, indo contra a principal característica do espectro, a dificuldade de socialização. Isso porque, na infância, as regras de como se comportar são diferentes para meninos e meninas; mulheres são mais forçadas a abraçar, sorrir, beijar e corresponder a estímulos sociais.
De acordo com as classificações médicas, o TEA é dividido em três níveis de suporte: nível 1, nível 2 e nível 3, aumentando assim, o suporte necessário para realizar atividades do cotidiano, do 1 para o 3.
No nível 1 de suporte, é possível que o autista não tenha nenhum atraso na linguagem, bem como conseguir realizar tarefas básicas e até complexas, mas ainda sofre com dificuldades de socialização. No nível 2, é possível que haja necessidades de adaptações para que consiga desempenhar atividades cotidianas, podendo ou não haver prejuízo de linguagem.
No nível 3, é comum que haja necessidade de suporte para atividades básicas e ausência ou grande prejuízo de linguagem oralizada.
Ainda assim, é possível que um mesmo paciente transite entre níveis de suporte ao longo da vida, devido a acontecimentos externos e tipo de tratamento que tem acesso. Há quem argumente que o número de pessoas autistas têm aumentado ao longo dos anos, entretanto, especialistas apontam que na verdade, é o número de diagnósticos que cresceu, não o de casos, principalmente em pacientes mulheres em idade adulta, que possuem nível 1 de suporte.
Nesses casos, muitas vezes, o diagnóstico vem por meio do parentesco com crianças recém-diagnosticadas. Foi o que aconteceu com a professora capixaba Renata Perozini, de 48 anos. Renata só foi diagnosticada aos 44, logo após o diagnóstico de sua filha, de 18 anos.
“Desconfiei que minha filha tinha algumas características do espectro e me preocupei, mas ao mesmo tempo, me identificava muito com ela. Durante a pandemia de Covid-19, ela ficou muito deprimida. Foi quando a terapeuta pediu minha ajuda com a sociabilidade dela, mas percebi que tinha questões sociais tão difíceis quanto. A partir daí, busquei ajuda terapêutica e assim, veio o diagnóstico. Foi muito demorado, sim, uma vida. Eu não tinha referências de pessoas autistas próximas a mim, por isso pensava que as dificuldades eram um problema só meu”, conta.
Autistas com o nível 1 de suporte se adaptaram à escola, universidade e ao trabalho, mesmo com dificuldades, como foi o caso de Renata.
“Hoje curso doutorado, fiz uma graduação, sou professora e tenho acesso a maioria dos ambientes, mas ainda sinto que perdi muita coisa por conta do diagnóstico tardio, e ainda perco. Passei muito tempo da minha vida sem saber que rumo seguir, troquei de faculdade muitas vezes, tudo por conta da socialização difícil. Ainda hoje, perco oportunidades no trabalho por não me comunicar como pessoas típicas”, diz.
Essas pessoas muitas vezes chegaram a ser diagnosticadas com outros transtornos psiquiátricos como ansiedade, depressão, bipolaridade e borderline. Foi assim que a programadora Julianna Pinheiro Machado, de 28 anos, passou cerca de dez anos sem o diagnóstico correto de autismo, e sentiu dificuldade em acessar bons profissionais de saúde.
“A descoberta do autismo nível 1 é uma coisa nova, sinto que muitos médicos se recusam a se atualizar. Fiquei dez anos tomando vários remédios errados, porque além de não diagnosticarem o meu autismo, não diagnosticaram o meu TDAH, que é uma comorbidade muito comum do autismo. Nisso, gastei não só muito dinheiro, mas saúde”, relata Julianna.
Julianna desabafa quando diz que a demora para o diagnóstico a faz sentir como se tivesse perdido dez anos de sua vida: “Tento me curar sobre o fato de que perdi dez anos de minha vida. Só fui diagnosticada ano passado tanto com TEA como TDAH mas pra isso passei por muitos problemas sociais, fiquei reclusa. Minha vida nunca foi uma vida típica, mas nunca consegui mostrar isso. Por ser funcional, as pessoas não me entendiam como autista. Pensam que porque eu consigo me expressar, não tenho autismo. Por todos esses anos me culpei pelas minhas deficiências, por isso imitava o jeito das outras meninas, mas isso foi muito dolorido”.
O ato de imitar o outro, dentro do espectro, é chamado masking, ou mascaramento, e acontece quando o paciente de fato imita pessoas neurotípicas para se adaptar socialmente. Renata conta que chegou a treinar falas de filmes e novelas em casa, copiando o jeito de algumas personagens para reproduzir em situações sociais: “sempre me senti muito deslocada, ainda tenho vergonha disso, mas já treinei e ainda treino o jeito de falar com as pessoas, copio frases de outros lugares”, revela.
Apesar de serem mulheres com vinte anos de diferença entre si, tanto Julianna como Renata apontam que o diagnóstico tardio prejudicou sua saúde. As duas explicam que, por não saberem do espectro, se submeteram a muitos eventos sociais, atividades e outros ambientes que as sobrecarregam física e emocionalmente.
“A minha filha tem uma consciência muito melhor que eu nesse sentido”, conta Renata, “ela não se força a estar em ambientes que não dá conta. Já eu, me machuquei muito tempo tentando me encaixar e me fazer sentir bem quando estava exausta física e emocionalmente. Pra gente, determinadas situações sociais são extremamente difíceis”, diz, e Julianna acrescenta: “as pessoas dizem que não sou autista porque olho nos olhos delas quando estamos conversando, mas não sabem quanto tenho que me esforçar pra fazer isso. Doi como se tivessem machucando a gente.”
Para além das mulheres
O diagnóstico de pessoas de grupos étnicos como negros e indígenas também são subnotificados, uma vez que a maioria dos dados sobre autismo são em pessoas brancas, indicando o quanto o diagnóstico ainda está associado a questões culturais, sociais, étnico-raciais e de realidade socioeconômica, fazendo com que algumas pessoas acabam nem conseguindo acessar o diagnóstico do autismo.
Se você é uma pessoa que desconfia de diagnóstico de autismo, o protocolo indicado no Brasil é procurar um médico psiquiatra ou neurologista, para encaminhar a investigação.