Por Redação Agência AIDS, em parceria com Mídia Ninja

Na manhã desta quarta-feira (24), a discussão sobre justiça reprodutiva, criminalização do HIV e o direito à amamentação de mulheres vivendo com HIV ganhou um novo fôlego. Especialistas e ativistas se reuniram na Aids 2024 para debater os desafios enfrentados por mulheres no mundo todo, destacando a necessidade de ampliar o debate e desestigmatizar a condição. O objetivo é garantir que mulheres HIV+ possam exercer plenamente o direito à amamentação de seus filhos e melhorar sua qualidade de vida.

A criminalização do HIV e da aids, que penaliza juridicamente pessoas com base na possibilidade de transmissão do vírus, tem sido criticada por diversos setores da sociedade. Estudos indicam que essas leis são ineficazes na prevenção da transmissão do HIV e, ao contrário, reforçam o estigma e a discriminação contra pessoas vivendo com HIV/aids. Para as mulheres, que já enfrentam múltiplas camadas de opressão, essa criminalização pode ter consequências ainda mais devastadoras, tanto para a saúde quanto para os direitos reprodutivos. Além disso, essa criminalização pode desencorajar as mulheres a revelarem seu status sorológico. Por isso, segundo as painelistas, é fundamental que todos se comprometam em promover mudanças.

A justiça reprodutiva busca assegurar que todas as mulheres, independentemente de sua condição sorológica, possam tomar decisões informadas sobre saúde sexual e reprodutiva, incluindo o direito à amamentação. Contudo, ainda não existe um consenso sólido entre a ciência, a política e a sociedade civil sobre essa questão, uma vez que as evidências disponíveis ainda são insuficientes.

Vozes ativistas

A ativista Mariana Iacono, da Comunidade Internacional de Mulheres Vivendo com HIV (ICW) Argentina, que representa as mulheres latino-americanas, especialmente as argentinas, enfatizou a importância de reconhecer a luta das mulheres. Ela observou que, apesar dos esforços globais e das diretrizes estabelecidas para erradicar a transmissão do HIV, pouco progresso foi feito desde então. “A amamentação para mulheres com HIV continua sendo proibida e criminalizada em muitos países,” lamentou.

Foto: Oliver Kornblihtt/ Mídia NINJA

A ativista foi enfática ao afirmar a urgência de promover a justiça reprodutiva. “É crucial reconhecer que o direito à amamentação para mulheres vivendo com HIV vai além do ato de amamentar. Trata-se da autonomia corporal, da justiça reprodutiva, da reivindicação de direitos que ainda estão pendentes e da implementação da eliminação da transmissão vertical como uma política pública.”

A ativista norte-americana Martha Cameron aproveitou a ocasião para desafiar a comunidade científica. “Vocês possuem os dados e o poder. É lamentável que tenham controle sobre meu corpo e minhas escolhas. Organização Mundial da Saúde (OMS), isso não é justo e não está certo. Espero que, na próxima vez que eu estiver aqui, vocês reconheçam que o I= I se aplica à amamentação para mulheres vivendo com HIV. O momento é agora”, declarou, emocionada, sob aplausos da plateia.

Foto: Oliver Kornblihtt/ Mídia NINJA

Evidências científicas e necessidade de novos estudos

A pesquisadora Natasha Davies enfatizou que “é crucial que trabalhemos arduamente para provar que o conceito de I=I [Indetectável é igual a Intransmissível] também se aplica à amamentação. Embora existam evidências que sugerem o contrário, essas informações são desatualizadas. Precisamos de novos estudos. Atualmente, sabemos que, com o conceito de I=I, indivíduos que seguem a terapia antirretroviral de forma consistente e mantêm uma carga viral indetectável não transmitem HIV por meio de relações sexuais. Contudo, ainda não temos informações claras sobre os níveis de carga viral necessários para garantir a segurança na amamentação.”

Foto: Oliver Kornblihtt/ Mídia NINJA

“Existem poucas evidências sobre a aplicação do conceito I=I à amamentação. Como mencionou anteriormente Mariana, é urgente aprofundar nosso entendimento nesse aspecto para que possamos aplicar o modelo I=I e permitir que todas as mulheres escolham a melhor forma de alimentar seus filhos. Solicitamos aos doadores, formuladores de políticas, profissionais de saúde e às próprias mulheres e seus parceiros que apoiem a alocação de recursos e financiamentos adicionais para pesquisas que garantam essa escolha para todas as mulheres. É fundamental assegurar que todas tenham essa opção.”

A pesquisadora Dvora Joseph explicou no debate que a transmissão do HIV durante o parto é considerada significativa a partir de 50 cópias de carga viral. “As diretrizes atuais indicam que alcançar e manter a supressão viral durante a gravidez e o pós-parto reduz o risco para menos de 1%, mas não elimina completamente o risco. A fórmula ainda é recomendada globalmente, e é crucial determinar esse limite, especialmente para mulheres que não conseguiram manter a supressão viral no terceiro trimestre ou durante o parto. Há casos extremamente raros de transmissão do HIV por mães que amamentam com carga viral abaixo de 50 cópias. Em um estudo do Dolphin 2, foi observado que, entre 242 bebês nascidos de mulheres vivendo com HIV em Uganda e África do Sul, que estavam em terapia antirretroviral (ART) e foram exclusivamente amamentados por seis meses, apenas um bebê contraiu o vírus. Mulheres em todo o mundo têm lutado pela autonomia na escolha da alimentação de seus filhos. Agora é o momento de apoiar essas mulheres e suas famílias. A amamentação oferece benefícios significativos para a saúde infantil, reduz custos, é culturalmente aceita, diminui o estigma e fortalece o vínculo entre mãe e bebê.”

Atualização de diretrizes e advocacy

Dvora mencionou que recentemente os EUA finalmente atualizaram suas diretrizes, alinhando-se com a orientação de 2016 da OMS e de outros países africanos, como a África do Sul, que já tinham diretrizes sobre amamentação para mulheres vivendo com HIV há cerca de uma década. “As novas diretrizes afirmam que as pessoas com HIV devem receber aconselhamento baseado em evidências e centrado no paciente sobre a alimentação infantil. A mudança nas diretrizes nos EUA não foi impulsionada apenas por pesquisas ou dados, mas sim pelo ativismo corajoso de defensores e mulheres vivendo com HIV. Acredito que, além dos dados, é necessário um forte trabalho de advocacy. Embora eu, como epidemiologista, sempre busquei dados, são os defensores que realmente impulsionam a mudança e a aplicação do conceito I=I para mulheres que amamentam. É fundamental que as ativistas continuem lutando pela autonomia na escolha de como alimentar seus bebês. Os dados virão, e é animador saber que isso está sendo levado à OMS para atualização das diretrizes.”

Racismo e xenofobia

A argentina Mariana Iacono encerrou sua fala destacando como o racismo e a xenofobia influenciam a discussão sobre amamentação. “A amamentação continua sendo um tema controverso porque, na América Latina, frequentemente se afirma que é uma questão restrita à África devido aos problemas com água potável e à impossibilidade de utilizar fórmulas. Essa visão é profundamente racista em relação à nossa região”, sublinhou a ativista.

Ela enfatizou que a amamentação vai além do direito de amamentar e das questões estatísticas, envolvendo aspectos coloniais, racistas e patriarcais que moldam as políticas e colocam o corpo das mulheres no centro das disputas. “Portanto, quando falamos sobre amamentação, não estamos apenas discutindo dados, mas também questões de colonização, racismo e patriarcado, que definem como os corpos das mulheres são controlados e regulados.”

Kéren Morais ([email protected])