Assucena: “quero ser ouvida com orgulho pelo meu país ”
Ex-integrante de As Baías, a cantora e compositora trans baiana fala sobre sua carreira solo, o legado que deseja construir, e os desafios e avanços das pautas LGBTQIA+ no Brasil
Por Luiz Vieira
Existem artistas que o público já tem uma opinião formada sobre a importância de suas obras para a cultura brasileira e para as futuras gerações, os vanguardistas, por assim dizer. Eu poderia estar falando de Gal Costa (1945-2022) ou Maria Bethânia, mas não, hoje gostaria de falar de outra baiana, de Vitória da Conquista: Assucena. Com uma voz angelical e um talento visceral, a brilhante cantora e compositora já até pensou em desistir de sua carreira musical, mas ela sabe que está com seu destino selado. Não é possível ir contra sua própria natureza, a de ser artista. Mesmo vivendo em um país estruturalmente LGBTfóbico, Assucena, sendo uma mulher trans, sonha ainda em poder ser reconhecida como uma grande cantora, como suas conterrâneas. “Quero ser uma representante da música brasileira e da cultura brasileira que dê orgulho, que construa linguagem, que converse com a beleza dos nossos ritmos, da nossa diversidade, do nosso colorido”, conta.
Assucena, junto de Raquel Vírginia, foram as primeiras cantoras trans a serem indicadas duas vezes ao Grammy Latino com os discos “Tarântula” (lançado em 2019) e “Enquanto estamos distantes” (lançado em 2020, durante a pandemia) quando faziam parte da banda As Bahias e a Cozinha Mineira – posteriormente As Baías -, que durou seis anos na estrada. “As Baías foi um grupo muito importante na minha trajetória, foi fundamental, tive a sorte de encontrar com muitos artistas”, lembra. A banda era composta também pelo guitarrista Rafael Acerbi, que ainda segue compondo e produzindo ao lado de Assucena em seus novos projetos.
Em 2021 Assucena iniciou sua carreira solo com “Rio e também posso chorar”, show-homenagem à Gal que se transformou em um tributo à artista que mais influenciou sua formação. Ela repete a dose da homenagem em “Baby, te amo – Tributo à Gal Costa”, show intimista em que apresenta releituras de sucessos da obra da imortal como Baby, Tigresa, Vapor Barato, Pérola Negra, Coração Vagabundo, dentre outros.
Em 2023, a artista lançou “Lusco-Fusco” (nome do disco carrega a metáfora da transição do dia para a noite e vice-versa), seu primeiro álbum solo, que conta com a produção musical de Pupillo e Rafael Acerbi, e direção artística da própria Assucena, ao lado da cantora Céu. Nesta nova fase de sua carreira, Assucena revela todas as suas cores e cantos em composições de sua própria autoria, revelando um trabalho marcado pela brasilidade, pela diversidade de ritmos e pelo diálogo entre a tradição e o contemporâneo.
No papo de hoje, ela fala sobre sua carreira solo, o momento da transição, e como enxerga os avanços das pautas LGBTs no Brasil atualmente.
Com vocês, a preciosa Assucena:
Minha querida, vamos começar? O que te move como artista?
Essa primeira questão é uma questão fundamental. Quase uma questão – quase não -, é uma questão filosófica; e eu imagino essa resposta como muitas camadas, como um tornado, sabe, que começa no chão, na materialidade, vai até o céu, as nuvens, ganhando outras proporções, porque de forma muito fundamental e simples, o que me move como artista primeiro é o meu desejo de me expressar no mundo como existência possível. E a forma desse movimento é a minha voz, é a minha palavra articulada pela minha composição e pelo meu canto. Então, primeiro eu só quero cantar e o fato de eu me expressar cantando é um sinal de que eu quero e preciso ser ouvida, mas eu não quero só ser ouvida por ser ouvida, eu tenho o que eu quiser. Então eu quero cantar. O direito ao amor de um grupo minorizado como o que eu sou.
Mas acho que além disso, existe uma conexão de movimento daquilo que me move, que é a arte como uma linguagem. Uma linguagem, ela é viva. E uma linguagem, ela catalisa outras linguagens e se conecta com esse algo maior, universal. Enfim, que não é só humano, é existencial, é universal. É aquela coisa do universo se materializando enquanto consciência em nós e na nossa linguagem. E a música é ela, então acho que são camadas desse movimento e daquilo que me movimenta.
Como foi fazer essa transição para carreira solo? O que ainda de As Baías tem de influência no seu modo de criar?
Olha, nenhuma transição é fácil, ela é uma decisão fácil, foi um processo difícil, mas necessário. As Baías foi um grupo muito importante na minha trajetória, foi fundamental, foi uma escola para mim também, tive a sorte de encontrar com muitos artistas enquanto as Baías estavam sendo criadas, e as Baías é fruto dessa conexão artística que a gente teve na universidade, na Faculdade de História, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), e no meu ano entraram muitos artistas, eu tive essa sorte, e a gente vai criando um apego quando a gente tem um carinho por aquilo que a gente cria, mas cada um estava no seu momento e a gente estava precisando entender que era um momento muito diferente para cada um, para as decisões, acho que um grupo para ele dar certo, assim como um casamento ou uma sociedade, a gente precisa falar a mesma língua, ter um alinhamento de expectativa. E a gente já estava perdendo esse alinhamento de expectativa. E natural, natural, não é sobre ser bom, ser ruim. Cada um queria tomar um rumo. E claro que num grupo, existem alguns debates narrativos, e alguns debates eles se sobrepõem a outros por muitas questões. Até ser cansativo, então quando está assim é melhor parar e cada um seguir o seu caminho. Então foi árduo, acho que mais por isso. Pelo apego, pela necessidade de ter uma sobrevida. A gente talvez tivesse uma vontade de continuar pelo apego e não mais reconhecendo as mudanças de cada um.
Tem algum(a) artista que você sonha muito em um dia poder gravar uma canção inédita ou cover juntos?
Olha, muitos, a partida da Gal inclusive impede a gente de sonhar com uma gravação, principalmente com esses grandes nomes, como Bethânia, Gil, Caetano, Milton Nascimento. Apesar de ter tido a honra de me encontrar com Elza Soares no palco duas vezes, em sala de ensaio, eu não tive a oportunidade de gravar com ela. Então, prioritariamente esses nomes que são meus mestres e minhas mestras.
Você acredita que as pautas LGBTs avançaram no Brasil?
Sem dúvida, as pautas LGBTs avançaram no Brasil, não necessariamente com políticas sociais reais de um avanço, eu acho que a gente avançou também em algumas pautas políticas, apesar da gente viver um momento de polarização muito conservador, mas eu acho que em termos do discurso, da narrativa, o próprio fato de não conseguirem mais trancafiar pessoas LGBTs no armário como antigamente, já é um avanço e a gente tem visto isso nos meios de comunicação, na rua, nos bares, na nossa família, que eu acho que é uma coisa fundamental e são avanços, então acredito, acho que tá querendo o que a gente quer, mas a gente avançou. Sombra de dúvida.
E eu sempre digo que nos primeiros anos do governo Lula, que teve aumento das universidades públicas, as cotas sociais e raciais principalmente, a internet sendo popularizada e os movimentos negros, o movimento feminista, o movimento LGBT, ele sempre existiu, mas é nesse contexto que ganha proporções muito grandes de organização, mas não só quantitativa como qualitativa. Claro que quando você ganha uma proporção muito grande de veiculação, como palavras empoderamento aparecendo na mídia, como a palavra racismo, machismo, transfobia, enfim, a gente também vai perdendo muito conceitualmente por causa da popularização, mas ao mesmo tempo ela é necessária e a gente vai ter que preencher constantemente, pela política, esses conceitos para que eles não se esvaziem. Mas o próprio fato dos conceitos de ganhar popularidade é um sinal de que os movimentos se ampliaram. E claro, ganharam outros contornos, a gente pode analisar isso em outro papo, mas sem dúvida, isso é fruto dos avanços.
Qual legado gostaria de deixar com sua arte?
Uma representante da música brasileira e da cultura brasileira que dê orgulho, sabe, que construa linguagem, que converse com a beleza dos nossos ritmos, da nossa diversidade, do nosso colorido. Então, eu gostaria muito de ser ouvida com orgulho pelo meu país. Eu amo a música brasileira, tenho muito orgulho dessa música e gostaria de ser ouvida com o mesmo orgulho, com essa beleza. As pessoas trans foram muito invisibilizadas dentro do processo da indústria fonográfica, da indústria televisiva, das artes em geral. E acho que agora é da hora da gente ser valorizada e sermos vistas como criadoras de linguagem.