As táticas das ultradireitas do mundo na batalha cultural: “Fazem política a partir da manipulação da emoção”
Nuria Alabao, doutora em antropologia e pesquisadora dos feminismos e das extremas direitas globais.
“O que a extrema direita utiliza para fazer política é a manipulação da emoção, e a sexualidade é um mecanismo que desperta grandes emoções”, diz Nuria Alabao, doutora em antropologia e pesquisadora dos feminismos e das extremas direitas globais. Seu livro As guerras de gênero, a política sexual das direitas radicais (Katrakat, 2025) –de download gratuito aqui– é uma ferramenta fundamental para historizar e analisar como se constroem os discursos sociais de pânico moral que acabam organizando as desigualdades materiais. “A intenção das ultradireitas é apresentar a construção dos papéis de gênero como algo natural ou de origem divina, o que estrutura sua ideia de sociedade e naturaliza, por exemplo, a divisão sexual do trabalho, um dos pilares mais fortes da desigualdade social”. Alabao também constata que a aliança entre liberais de mercado e conservadores religiosos começou a se gestar nos últimos anos da década de 60, com estratégias políticas, comunicacionais e de financiamento que agora alcançam resultados globais numa era liminar em que nenhum acordo internacional ou de Direitos Humanos parece ter relevância, especialmente após Gaza.
“Escolhi falar de ‘guerras de gênero’ para vincular com sua própria linguagem, aquela que coloca a ‘ideologia de gênero’ como fonte de todos os males”, diz Alabao, cujos estudos sobre as direitas radicais nos EUA e na Europa servem perfeitamente para entender como o governo de Milei e sua busca planejada por bodes expiatórios se encaixa na estratégia internacional.
Aqui o termo usado –e ao qual o libertariado dá bastante mística– é “batalha cultural”. No seu livro você também apresenta essa “guerra” como cultural?
–O livro se organiza a partir de uma reflexão que parte da noção clássica de guerra cultural, uma noção estadunidense dos anos 90, e o que diz é: houve um momento em que a política deixou de se organizar em torno do eixo redistributivo, por assim dizer, e as eleições se jogam sobre conflitos que chamamos culturais. Por exemplo, nos EUA podem ser as armas de fogo ou a questão do aborto; na Europa, as questões de gênero e sexualidade têm um papel super relevante. Isso responde também ao fato de que muitos partidos social-democratas perderam sua base de eleitores representada pela classe trabalhadora e começam a representar outros setores sociais.
Pode dever-se a uma mobilidade social que estagnou?
–Em todo caso, é o que permite às direitas radicais dizer que esses partidos já não respondem às necessidades da classe trabalhadora, mas formam parte da cultura política dessas classes médias profissionais representadas como privilegiadas. Esse é o conceito canônico e é verdade que, do feminismo, dizemos que o material e o cultural não são tão fáceis de delimitar. E que essas questões culturais têm consequências profundamente econômicas e materiais. Então, é verdade que as guerras como eles as utilizam têm um certo tacticismo. Usam-nas para desviar a atenção de questões materiais ou conflitos políticos, embora no fundo muitas delas estejam totalmente imbricadas. Por exemplo, em relação ao trabalho estratificado socialmente a partir de linhas de gênero, cor de pele, por ser migrante, etc.
Aqui na Argentina observamos como, desde que Javier Milei chegou ao governo, a batalha cultural e as ideias mais conservadoras e religiosas se ligaram mais intimamente do que nunca às estratégias políticas e de governo, e o mesmo se vê em outros países ou nos fóruns onde as ultradireitas se encontram. Já não se fala só da família ou do aborto, mas de tudo isso em relação à economia, à política e ao lugar do Estado. Por que você acha que se consolidou essa relação entre conservadores e liberais –no nosso caso, libertários?
–No livro dou o exemplo dos EUA: a nova direita estadunidense é uma espécie de aliança entre o neoliberalismo nascente –na segunda metade dos anos 70– e os conservadorismos que começam a fazer grandes temas dos avanços feministas e das dissidências sexuais e de gênero. A reação, que naquele momento se apresenta assim, vai decantar numa aposta política que dará lugar às vitórias de Ronald Reagan nos EUA, Margaret Thatcher na Inglaterra e que precisamente vão transformar o mundo de maneira radical, hegemônica, até nossos dias, com o triunfo do neoliberalismo.
Mas são alianças buscadas, coordenadas, de um e outro lado do oceano?
–Naquela época, vemos uma organização de atores conservadores em vários planos. Começam a trabalhar as questões de gênero e sua oposição a determinados direitos. E a partir deles vão gerar uma determinada gramática política: “Se adotarem esta gramática política, vão ganhar eleições. Ou vão aumentar sua influência ou poder social.”
Então, são 40 anos em que essas organizações vão gerar seus espaços de encontro, haverá muito financiamento.
Claro, mas o neoliberalismo guardava sua postura democrática e até dos feminismos e movimentos LGBTIQ* nos preocupávamos mais com o pink washing que com outra coisa…
–Bem, agora estão ocorrendo múltiplas crises, uma delas é a do projeto neoliberal, e emergem atores que já questionam a própria democracia liberal. É o momento de oportunidade em que toda essa cadeia de atores que levam mais de 40 anos se organizando, gerando recursos, redes, mas também um determinado discurso e aposta política, começam a ocupar a centralidade em muitos países.
Você fala de atores como o Congresso Mundial das Famílias? Porque é uma organização inter-religiosa com muito poder de lobby…
–O Congresso Mundial da Família na verdade é um contêiner, surge de uma organização ultraconservadora de caráter religioso, mas vai além e soma várias funções. Uma é reunir todos esses diferentes níveis organizativos que podem ser desde atores laicos, partidos políticos, organizações como Citizens Go ou a Rede Política pelos Valores (ligada a Viktor Orbán) com atores, narrativas e recursos, ou seja, com quem utiliza seus encontros para tecer essas redes. Então, eles olham o mapa global e onde veem que haverá uma batalha importante, montam um congresso. Por exemplo, na Espanha, quando o fizeram em 2012 foi porque se abria uma batalha contra o casamento igualitário.
Onde se cozinha o relato antifeminista
“O que acaba acontecendo é que vem contra você” dizia Patricia Bullrich no programa de stream Carajo ao falar de feminismos extremos e os supostos perigos do empoderamento em relação ao duplo feminicídio cometido por Pablo Lautra. Encontros –como a CPAC, onde negócios, política e moral conservadora vão juntos– surgem narrativas coordenadas, porque além da pouca habilidade de Patricia Bullrich para falar, de diversos modos e em distintos países se está abonando uma figura feminina desempoderada, justamente.
–Por uma parte é evidente que compartilham argumentos, mas também têm que fazer uma adaptação aos contextos onde operam e ao tipo de consensos mais arraigados nas distintas sociedades. Por exemplo, Marie Le Pen votou a favor da constitucionalização do direito ao aborto na França ou Geert Wilders, dos Países Baixos, líder do Partido pela Liberdade, apoia o casamento igualitário, apoia os direitos LGTBI.
Mas nem sempre buscam a centralidade. Muitas vezes o que tentam é compor os desafetos desses consensos sociais. Por exemplo, Vox, que é mais radicalmente antifeminista que outras extremas direitas equivalentes da região. Se falamos da lei de violência de gênero, todos os partidos espanhóis apoiam a atual lei de violência de gênero salvo Vox e essa postura permite dizer: “Nós somos diferentes, nós somos antisistema, nós nos atrevemos a dizer o que muitas pessoas não se atrevem.”
Mas a quem captam com esse discurso tão ultra?
–Vox tem o maior número de eleitores homens divorciados. Vão compondo entre diversos grupos de agraviados uma massa de eleitores, embora isso lhes dificulte conseguir uma centralidade que lhes permita governar…
Poderíamos pensar que Milei toma a mesma estratégia de Santiago Abascal, a quem sempre rende pleitesia. Porque também aqui há um forte consenso contra a violência por razões de gênero, mas do governo e seus seguidores insistem em sua cruzada contra a própria palavra feminicídio.
–Na realidade, o que querem fazer é lutar contra esta ideia que traz o feminismo de que há estruturas sociais que provocam determinados modos da violência. Estruturas sociais históricas, construções que possibilitam entender como essa violência se dirige especialmente às mulheres ou corpos feminizados ou a determinadas pessoas. E eles tentam negar que isso exista.
Também compartilham um retorno à retórica do valor da família fechada, tradicional…
–Isso é um tema que arrastamos há muito porque quando se produz a aliança entre o neoliberalismo nascente e o conservadorismo, um de seus cavalos de batalha –explica muito bem Melinda Cooper em um livro chamado Os valores da família– era algo muito parecido à alocação universal por filho, que era uma ajuda a mães solteiras que, a modo de caricatura, se chamou em inglês Welfare Mothers e se utilizou na Inglaterra para representar aquelas pessoas que viviam de ajudas sociais e não queriam trabalhar. Como para representar os aproveitadores do sistema.
–A tradução argentina poderia ser “se engravidam por um plano”, que se ouviu muito quando começou a entregar a AUH.
–Vale, exatamente. É muito curioso porque esses argumentos vêm dos anos 70, 80 e no início houve como uma espécie de grande consenso a favor do estado de bem-estar, inclusive por parte da direita. O que acontece é que os conservadores começam a ver que este tipo de ajuda reduz a dependência das mulheres de seus maridos. E então dizem: “Não podemos dar ajudas que estejam enfraquecendo a instituição familiar.” Isso é um dos grandes símbolos de por que ir contra o estado de bem-estar e a implicação disso é por que fomentar os cuidados dentro do lar tirando impostos das famílias e fazendo com que elas se ocupem da atenção sanitária, do cuidado do lar, da criação, etc.
Em definitivo, que se ocupem elas.
–É que precisamente muitos dos esquemas e conceitos que se utilizam agora vêm daquela época de muitas mudanças na vida das mulheres e das pessoas lgbtiq+, em que há uma expansão de formas de vida possibilitadas por estas lutas feministas e das dissidências sexuais e de gênero que também estão tramadas com outra série de lutas do momento pela ampliação do Estado de Bem-Estar, contra a colonização, pela liberação sexual, etc. Os conservadores vão atribuir a estas lutas todos os males sociais: a perda de autoridade paterna, a delinquência, as adicções. E até hoje buscam reinstaurar essa autoridade.
Essa nostalgia lhes funciona às direitas para colher eleitores, sobretudo masculinos.
–O da família lhes funciona, porque precisamente num momento de contração do Estado de Bem-Estar, para muita gente a família é o único que proporciona certa segurança dentro da insegurança social. Além disso, há uma base material deste conservadorismo social e é que os jovens dependem mais de seus pais porque os salários perderam peso em relação, por exemplo, às rendas que vêm da especulação imobiliária ou rendas da financiarização. Pela transformação da economia também. Isso faz com que você tenha que se submeter às expectativas que a família tem sobre você e isso é um socializador em papéis de gênero fundamental e um espaço de controle social muito forte. Por isso aos conservadores parece tão importante a família, porque segura de alguma maneira a expansão das formas de vida.
O que você acha que têm em comum estas direitas radicais, como você as chama, com o fascismo ou o neofascismo?
–O fascismo, por um lado, queria deter determinados mudanças sociais, mas por outro tinha uma visão revolucionária do futuro. Nesta crise da modernidade, já não pensamos que o futuro vá ser melhor. É um dos problemas mais candentes do nosso tempo: o futuro está cancelado. Com a mudança climática, com as sucessivas crises econômicas e sobretudo com que não conseguimos gerar, se não utopias, possibilidades reais de uma transformação em sentido emancipatório, não? Uma transformação social profunda. Esse espaço de vazio o ocuparam com estas retroutopias, como as nomeia Bauman. Esta volta ao passado idealizado que nunca existiu.
O fascismo nasce fundamentalmente como uma forma de deter esta revolução social das classes operárias e também dos feminismos. E o certo é que agora mesmo não temos uma revolução social equiparável.
As lutas e conquistas feministas ou das dissidências sexuais poderiam qualificar como revolução social?
–Diria que muitas de nossas conquistas se declinaram em termos liberais, ou seja, dentro deste próprio sistema, não?. Embora creia que conseguimos muitas coisas, é certo que a maior parte das coisas que conseguimos não desafiam o sistema, não desafiam a redistribuição da riqueza ou o poder.
Digamos também que têm essa potência quando pensamos na agenda que coloca o cuidado no centro da organização social, que disputa a reprodução da vida como trabalho ou inclusive que busca desarticular a família fechada e tradicional.
–Para isso temos que ter a força social e política para impor esta visão. E não se pode fazer só com as mulheres, essa é a outra grande questão. Que eu creio que na Argentina vocês estão se replanteando agora muito: está crescendo o antifeminismo? É porque se fez tudo bem? Porque é uma reação? Não é a única leitura. Eu creio que é um momento também de replantear que novas alianças podemos fazer com os jovens contra a desigualdade, contra o verdadeiro inimigo que de nenhuma maneira somos os feminismos.
Assim como avalia que o neoliberalismo transformou o mundo, estamos agora num momento liminar frente ao crescimento destas ultradireitas?
–Há algo evidente e é que com o genocídio em Gaza se transpuseram todas as últimas fronteiras inclusive simbólicas de respeito a uns direitos internacionais, humanos, e isso supõe uma mudança fundamental que está unida à transformação da política internacional.
Estas extremas direitas, e Trump é um caso evidente, respondem à reorganização geopolítica dos poderes mundiais. E do papel dos Estados Unidos ante a ascensão da China e de outros países asiáticos. Estamos num momento de recomposição global onde não se sabe muito bem o que vai acontecer. Neste cenário, Gaza aparece como um experimento brutal que nos está dizendo que agora mesmo não há limites.
Ou seja, se num momento dado as direitas, a ultradireita ou inclusive os fundamentalismos estavam disputando nos organismos de direitos humanos como a ONU a linguagem dos direitos, creio que agora estamos em outra fase em que podem simplesmente obviá-los, ignorá-los. Trump, Netanyahu, são um exemplo disso.



