“As piores violações estão acontecendo com a população trans”, alerta Keila Simpson em entrevista
Reconhecida como uma das “traviarcas” das comunidades LGBTQIAPN+ do Brasil, Keila Simpson foi a 1ª travesti brasileira a receber o título de Doutora Honoris Causa pela UERJ
Por Kaio Phelipe
Nascida no Maranhão, Keila Simpson começou seu ativismo em Salvador, em 1995, trabalhando com prevenção ao HIV e, em seguida, fundou a Associação de Travestis de Salvador (ATRAS). Em 2013, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos das mãos da presidenta Dilma Rousseff e, em abril de 2024, se tornou a primeira travesti brasileira a receber o título de Doutora Honoris Causa pela UERJ. Atualmente, Keila é a presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).
Além da sua jornada até se tornar uma das principais ativistas do país, conversamos sobre a história do pajubá, a importância da regularização da prostituição e o episódio de transfobia e deportação que sofreu recentemente no México.
Como veio o título de Doutora Honoris Causa?
Eu já tinha feito alguns trabalhos envolvendo o meio acadêmico em minha atuação enquanto ativista. Algumas pessoas, professores e universidades já haviam falado sobre essa ideia, mas nunca passou do âmbito da conversa. Daí, trabalhando mais com Sarah Wagner York e Bruna Benevides – a Sarah atuando na UERJ e a Bruna no processo de movimentar as bases e estruturas do movimento LGBTQIAPN+ e, especialmente, do movimento trans -, elas começaram a se perguntar por que não propor para a academia uma ideia com essa proporção. Logo em seguida, as duas começaram a dialogar com professores e apoiadores para avaliar essa possibilidade. Esse título vem com o pensamento de que é preciso serem feitos blocos de pessoas, principalmente de travestis, que merecem essa nomeação por terem atuações a nível de produções acadêmicas e que não estão na academia. Então surgiu o meu nome, o nome da Jovanna Baby e de outras pessoas. Ao decorrer das ideias, o filtro foi afunilando e me escolheram e escolheram a UERJ. Muita gente se somou a essa estratégia e não foi uma tarefa simples. É preciso muito trabalho para fazer a concessão desse título, é preciso de muita pesquisa. Foi preciso consultar professores de outras instituições e do Brasil afora. A sorte que eu tive foi porque, de fato, sou conhecida nesses espaços e as pessoas não se negaram a incluir seus nomes. Teve um movimento muito grande, para além da minha rede. E aí vai para a academia, para o Conselho Universitário, é designada uma pesquisa, a apresentação de um parecer para o conselho, que vota e aprova ou não. Tem todo um processo após o parecer do conselho, que é o que aconteceu no último dia 18 de abril, dois dias depois de eu ter completado 59 anos.
Recebi esse título e, para mim, veio como um presente de aniversário. Fiquei muito feliz, lisonjeada e agradecida. Agradecida, principalmente, à população trans, porque é fruto do trabalho que tenho com elas e a contribuição delas nesse processo todo. Tudo o que eu faço, tudo o que eu represento e todos os lugares onde estou, devo tudo às pessoas trans. Eu trabalho por conta do apoio que recebo da população trans. Foi importante a ideia desse título ter partido de duas travestis e foi importante, no dia da concessão, a presença de uma infinidade de pessoas trans. Por conta da presença dessas pessoas trans, me achei no direito de receber o título da reitora Gilmara Azevedo. Eu queria fazer algo diferente, queria que as pessoas trans estivessem comigo, já que elas estão comigo desde o início do processo. Foram as travestis das esquinas das ruas de Salvador (BA) que me colocaram nesse processo. Foram as travestis prostitutas que indicaram ao professor Luiz Mott, do Grupo Gay da Bahia, que eu poderia fazer trabalho de prevenção ao HIV e a AIDS, distribuindo preservativo. Com esse título, vem muitas memórias em minha cabeça. Eu não poderia deixar de ter as pessoas que estiveram comigo durante todo esse processo me acompanhando.
Qual é o papel da ANTRA?
A ANTRA é uma instituição que nasceu em 1992, no Rio de Janeiro, por conta da criação do grupo ASTRAL, que foi a primeira instituição do Brasil e da América Latina. De acordo com a Jovanna Baby, é a primeira instituição trans do mundo e acredito que já tenha chegado esse reconhecimento porque antes dos anos noventa, não tínhamos absolutamente nada. A ANTRA nasce também com o intuito, como todas as organizações desses período, no processo de reação. A gente já tinha saído da ditadura militar, mas ainda tinha uma conjuntura muito difícil – principalmente no que dizia respeito aos costumes, a ideia de se reconhecer, se assumir e reivindicar direitos. O início dos anos noventa foi um momento crucial da nossa história. Assim, foi fundada a ASTRAL, com a perspectiva de atuar nessa ebulição de movimentos – da mesma forma nasceu a ATRÁS, em Salvador, em 1995. A ANTRA nasceu do movimento de travestis e foi ganhando corpo ao decorrer da sua atuação. Em 1992, ela surgiu com o nome RENATA, Rede Nacional de Travestis, depois passou a se chamar RENTRAL (Rede Nacional de Travestis e Liberados). Em 2000, na cidade de Porto Alegre, ela ganhou o nome de Associação Nacional de Transgêneros e, a partir daí, a ANTRA tem uma constituição jurídica e começa a atuar de uma forma mais efetiva. Antes, ela já atuava, mas de uma maneira mais artesanal e os acessos eram mais difíceis. Em 2000, a ANTRA se consolidou como uma rede nacional e não tinha nenhuma outra. Nós tínhamos muitas participações nos espaços do Governo Federal, criamos grupos de trabalho e atendemos muitas demandas.
A ANTRA era bastante chamada para compor os grupos que originaram as políticas, ainda pouquíssimas, mas que se originaram nesse processo. Começamos a trabalhar fortalecendo outras instituições Brasil afora e, em 2004, conseguimos um projeto nacional chamado Tulipa, que era um projeto de fortalecimento institucional da população trans. Hoje, especialmente, fazemos muita incidência política e também atuamos com organizações afiliadas. Estamos desenvolvendo alguns projetos de campo específico para o nosso fortalecimento institucional, mas a gente sempre está olhando para o espectro político em que a gente vive, até por conta dos seis anos que a gente mergulhou nas trevas a partir do golpe da Presidenta Dilma. Atuamos muito no Judiciário porque é uma das frentes que a gente tem conseguido conquistar alguns direitos e é preciso disputar a política pública. A gente também está trabalhando em um projeto com a população trans idosa, que tem a cara da nossa instituição. Quase sempre a gente fala da juventude, mas nunca da velhice. Chegou esse momento, felizmente. Mas vale pensar o motivo de não se falar disso. A gente sabia que a nossa expectativa de vida é muito baixa. Estamos começando a modificar essa ideia, nós temos uma população que está envelhecendo e precisamos também olhar para suas especificidades.
Qual é a importância da prostituição?
A prostituição conseguiu me dar uma parcela altíssima de tudo o que eu sei. Quando eu passo para o meio acadêmico e para outros espaços onde vou dialogar e debater pautas importantes, eu levo todo esse acúmulo que ganhei nas esquinas. Eu estou falando da prostituição que acontece nas esquinas e não da prostituição moderna, de rede social, site, telefone e apartamento. Eu sempre designo a esquina como um palco para as travestis e estou falando dessa prostituição. Obviamente, não estou hierarquizando o trabalho das prostitutas ou colocando glamour, apesar de ter. Para mim, que decidi me sustentar através da prostituição por livre e epontânea vontade, porque a prostituição nunca me corrompeu, para mim, é o melhor lugar. Você está encontrando diversos clientes durante a noite e você consegue conversar, aprender e ensinar diversas formas de lidar com o ser humano. A sala de aula, muitas vezes, não é a única a formar pessoas e as travestis são craques em saber disso. Eu chamo isso de Pedagogia do Confronto. Como vou confrontar essa pessoa? Não é com violência nem com desrespeito, mas explicando de uma forma nítida a pessoa que eu sou e como eu quero ser respeitada e respeito os outros.
Um exemplo para ilustrar isso é: um cara para diante de mim e me pergunta se eu sou homem ou mulher, eu respondo “eu sou homem, você não está vendo?”, ele questiona o que eu falo e eu respondo de volta “ué, se você conhece apenas dois gêneros e se para você homem tem pênis e mulher tem vagina, então nesse sentido eu sou homem igual a você”. Quando eu jogo ele no confronto de mexer com a masculinidade, ele começa a se questionar, então eu aproveito e digo “então eu não sou esse homem que você está pensando aí, existem muitas formas de feminino e masculino”. Isso eu faço em conversas de dois ou três minutos. Você confronta o cara que chega cheio de preconceitos e você não acaba com esses preconceitos, mas coloca um elemento na cabeça dele, que vai virar um questionamento. A prostituição ensina muito.
Como foi o caso de deportação que sofreu no México?
Eu sempre penso, quando falo em fronteiras e imigração, na população trans e em como ela se divide nos espaços mundo afora. O que aconteceu comigo é a coisa mais comum quando se é uma pessoa trans. Não foi por conta da retificação do nome. Eu tenho seis passaportes na gaveta da minha cômoda e todos estão cheios de carimbos. Visitei diversos países, estive em todos os continentes, viajei até para a Austrália e nunca tive o nome retificado. O processo no México se deu por conta de preconceito, discriminação. Quando cheguei na fronteira, apresentei o passaporte e o visto, o guarda aduaneiro me perguntou para onde eu ia, apresentei o endereço do hotel onde eu ficaria, ele perguntou o que eu iria fazer, apresentei a programação do evento para onde eu iria participar com o meu nome Keila Simpson, mas ele tinha visto que a reserva estava com meu nome antigo, mas ele tinha visto que o nome social estava junto. Logo, ficou fácil entender que a Keila da programação do fórum é a mesma Keila do hotel e a mesma da passagem. Quando ele viu todos os documentos, ele pediu meu bilhete de passagem de volta e eu expliquei, arranhando um espanhol, mas que dava para compreender, que eu não tinha passagem de volta porque a empresa aérea só permitiria fazer isso com vinte e quatro ou quarenta e oito horas de antecedência da viagem acabar. Eu ia passar sete dias no México, então não tinha como estar com a passagem de volta ainda. Apresentei a reserva eletrônica a ele, mostrei a data que eu voltaria e ele perguntou se eu tinha dinheiro para ficar lá, respondi que sim e que o hotel onde eu me hospedaria já estava pago e que o meu dinheiro seria apenas para a alimentação e para o que eu quisesse fazer lá. Depois de toda essa conversa, ele não me deixou passar. Chegou um outro guarda, pegou meus documentos e falou para eu seguir ele. Ele me levou para uma sala, tentei entrar em contato com alguém pelo meu celular, não consegui e aí ele puxou meu telefone. Aí pronto, não tive mais acesso ao meu próprio telefone e fiquei totalmente sem comunicação e sem saber o porque eu estava sendo barrada.
Novamente, fui investigada naquela sala com outras pessoas e dei a mesma explicação, mostrei os mesmos documentos e mesmo assim não me deixaram entrar no México. Me levaram para outra sala, onde tinha mais pessoas e era uma sala com várias beliches e um guarda na porta, isso dentro do próprio aeroporto. Quando já era quase uma hora da tarde, me levaram uma refeição horrível, quase indigesta. Para ilustrar, parece que eles cozinharam um feijão com água e sal, fizeram uma pasta e passaram no pão. Eu não comi, me dá asco só de pensar. Perguntaram se eu queria fazer uma ligação, eu tentei ligar para o pessoal de São Paulo e não consegui falar. Tentei ligar para o pessoal do México, que também não atendeu. E não tive mais direito a nenhuma ligação. Só que quando a Raquel, que é uma pessoa de São Paulo, da ABONG, que eu estava indo representar, viu o prefixo de outro país, retornou para esse número, mas número de aeroporto não recebe chamada. Já estava entrando no período da tarde e eu não havia chegado no evento, que era para eu ter chegado sete horas da manhã. Começaram a fazer um movimento e alguém que estava me aguardando escutou falar que várias pessoas do voo tinham sido retidas e todo mundo começou a me procurar, tentando conversar com algum guarda da fronteira e do setor de segurança, explicando que eu tinha regularidade, mas não conseguiram falar com ninguém. Quase quatro horas da tarde, recebi o representante de um órgão de direitos humanos do México. Uma deputada chamada Salma, da Cidade do México, acionou advogados. Um guarda me tirou da sala onde eu estava, fiz uma entrevista com o representante e expliquei tudo o que tinha acontecido. O representante da Salma chamou um representante dos guardas aduaneiro e fez uma entrevista com ele, perguntando porque eu tinha ficado retida, e ele respondeu que foi por conta da inconsistência da documentação. Eu disse que não foi por isso, todos os meus documentos estavam comigo e todos estavam válidos e perguntei onde estava a inconsistência e se era preconceito com o meu nome porque eu me chamo Keila e no passaporte estava outro. Ele insistiu em dizer que não era discriminação, mas o representante do órgão dos direitos humanos que estava me atendendo pediu que ele redigisse e assinasse um documento dizendo o que ocorreu porque foi preconceito, sim. o representante disse que, se fosse mais cedo, eu ainda conseguiria entrar no México, mas o pedido de impedimento de entrada já tinha sido executado e que eu voltaria para o Brasil.
Isso aconteceu às cinco horas da tarde e o voo era às sete. Quando cheguei em São Paulo, já tinha uma movimentação porque ninguém tinha notícias minhas e isso teve repercussão. A deputada Salma me mandou uma mensagem pedindo para falar comigo e querendo que eu voltasse ao México. Eu disse que não tinha condição, passei doze horas indo e doze horas voltando. Agradeci o empenho dela e que em outro momento eu voltaria, em outra conjuntura, para a gente trabalhar através dessa perspectiva. No final das contas, o importante é que o fórum aconteceu. O processo está rolando até hoje. Estou esperando uma resolução para ver no que vai dar.
Quando cheguei em São Paulo, me fizeram essa mesma pergunta que você me fez e eu respondi que “eu fui um caso à parte, existem milhares de travestis do Brasil que saem do país em busca de uma condição de vida melhor e elas ficam em condições piores do que a que eu estive, elas ficam presas, vão para centro de acolhimento, não recebem alimentação”. Dificilmente, travestis vão para as fronteiras e não passam por dificuldades. É a população mais perseguida, todos os processos são dificultados. A gente precisa discutir sobre isso. Por que esses impedimentos? O que tem de diferente nessas pessoas? A gente precisa analisar sobre qual régua estão nos avaliando. É por conta da prostituição? Eu não estava indo me prostituir. O mundo precisa entender que nós somos muito mais hipersexualizadas do que trabalhadoras do sexo. Talvez, a partir desse acontecimento, a gente consiga com que os procedimentos nas fronteiras sejam menos hostis.
A expectativa de vida de mulheres trans e travestis é de trinta e cinco anos?
Na Antra, quando a gente calcula a idade média das pessoas trans assassinadas, dá esse número. A gente adoraria divulgar uma expectativa de vida mais longeva, mas a realidade é essa. O que assistimos diante de toda a nossa experiência e pesquisa, a realidade é essa. A população trans é a mais vitimizada em relação a assassinatos e outras violências. Eu queria muito ser mais otimista, como são as pessoas que contestam essa pesquisa, e acreditar que a expectativa de vida é maior, mas quem contesta não tem embasamento. Pelos dados da Antra, a expectativa de vida é trinta e cinco, trinta e seis anos e essa informação é atualizada todo ano, mas os fatos não estão mudando. As piores violações possíveis estão acontecendo com a população trans e é uma realidade ainda mais violenta quando também são pessoas pretas e periféricas.
Como surgiu o pajubá?
O pajubá foi incorporado nos nossos diálogos no período da ditadura militar, entre os anos 80 e 90, e era um dialeto que as travestis prostitutas utilizavam para conversar entre si sem serem entendidas por quem estivesse passando. E, quando elas estavam presas ou sobre a vigilância da polícia, elas usavam para as autoridades não entenderem. Não que as conversas não pudessem ser ouvidas, era mais uma tiração de sarro da cara das pessoas. Era bom poder falar e não ser compreendida. Daí o pajubá, que inicialmente veio do iorubá e do candomblé, foi se misturando com outras características linguísticas. Como tudo do nosso universo acaba sendo popularizado, os gays começaram a utilizar também. Naquela época, as travestis e os gays tinham muito convívio.
A partir daí, outras palavras foram entrando e, quando a grande mídia começou a mostrar um pouco do contexto daquele momento, o pajubá foi se popularizando. Tinha uma novela onde uma personagem usava muito as palavras “ocó” e “aquer” e aí caiu na boca do povo. Não é possível controlar uma língua, ela se move o tempo todo e essa popularidade é muito importante do ponto de vista linguístico. O pajubá ganhou outro significado. Tem muitas produções que falam sobre isso. Eu participei de dois filmes que falam sobre isso: Línguas, do Estevão Ciavatta, e Pajubá, dirigido por Gautier Lee. Eu desejo que o pajubá permaneça durante muito tempo como uma forma de se expressar. Isso é algo nosso. Poder falar algumas palavras e não ser compreendida é a nossa vingança contra o que a cisgeneriedade fez.