Por Elisabeth Passos

Em 1979, houve um golpe de Estado depondo o general Carlos Humberto Romero e instituiu-se uma junta civil-militar no poder em El Salvador. Isto fez com que a repressão militar nos anos seguintes aumentasse, assim como a crise política. Em março de 1980, o bispo Oscar Romero, indicado ao Nobel da Paz, foi assassinado e, com o acirramento dos conflitos, marcou-se o início da Guerra Civil. Nos anos 1980, a partir da mobilização dos grupos, tanto na cidade quanto no campo, e com apoio da população civil, formou-se a guerrilha Frente Farabundo Martí para Libertação Nacional (FMLN), que atuou até sua desmobilização em 1992 com os Acordos de Paz. Os outros atores desta guerra foram os militares do governo salvadorenho e os grupos paramilitares de direita.

O movimento de guerrilha de cunho revolucionário sustentava-se pela vontade daqueles que desejavam mudar a ordem estabelecida e, para isso, faziam investimentos pessoais difíceis de serem mensurados em situações de paz. Muitos guerrilheiros e guerrilheiras deixavam filhos e família ou uma vida estável e passavam a viver em condições adversas em prol do ideário revolucionário. Contudo, quando uma mulher optava por se tornar uma guerrilheira, não só as críticas sociais apareciam, mas também toda uma série de desdobramentos que envolviam sua sexualidade e maternidade. 

A atuação feminina da FMLN de El Salvador é um tema que merece um olhar apurado, pois faz menção a questões de ordem socioeconômica e de gênero, inclusive quanto à participação efetiva no movimento de guerrilha. Nesse artigo, vamos nos voltar para as questões que envolvem, sobretudo, o ato de cozinhar e a alimentação.

Porque houve a adesão das mulheres?

Foto: Paolo Luers

Entrar para a guerrilha no caso das mulheres de El Salvador envolvia outras questões, como a liberdade sexual, maternidade, estupro, aborto, e não somente a disputa política. Na sociedade salvadorenha pressupunha-se que a mulher destinava-se a ser mãe. Entretanto, havia o anseio de escolher outras possibilidades, o que fez o número de participantes guerrilheiras crescer. Contudo, fazer parte da mudança histórica nunca é fácil para as pessoas do sexo feminino.

Campesinas e citadinas compunham o corpo de guerrilheiras salvadorenhas. As mulheres aderiram à guerrilha, em muitos casos, para acompanhar seus familiares, sejam os pais ou mães, sejam seus filhos e filhas; as que vieram da cidade para o combate no campo sentiram a dureza da vida nas montanhas de El Salvador.

“En la ciudad vivíamos con algunas comodidades, no con gran bonanza ni riquezas, pero sí con algunas condiciones y bueno, llegar allá fue un poco difícil, recuerdo que me era difícil comer, no había platos, el arroz nos lo daban en la tortilla y así había que comerlo, solo teníamos dos mudas de ropa, había que dormir en suelo”. Este é o relato de Marlene que se incorporou junto com seu esposo em um acampamento antes da ofensiva de 1989 e lá permaneceu até os Acordos de Paz. Este trecho foi citado na obra Montana y Mujeres.

Entre as guerrilheiras havia uma rivalidade quanto às suas origens, reflexo das diferenças de classe social. Na prática, o comportamento discriminatório era reproduzido com as novatas, como ocorre no militarismo. São os ritos que se passam em ambientes militarizados, cuja cumplicidade se constitui em momentos difíceis.

O objetivo das mulheres, ao entrarem para a luta armada, era o combate com armas, e muitas o fizeram e foram mortas em combate. Mas, para algumas dessas possíveis combatentes, essa vontade ia diminuindo, pois, geralmente, os homens que ocupavam os postos decisórios as encaminhavam para as tarefas ditas “femininas”, como a cozinha. Poderiam, também, ser enfermeiras ou trabalharem na comunicação com o uso do rádio.

La primera tarea que dieron fue la cocina, me dijeron que tenía que hacerlo porque una mujer que llegaba de la ciudad no podía pasar a otra estructura de trabajo porque entonces quedaba en desigualdad” disse Silvia, membro da guerrilha (Mujeres y Montana, p. 126). Isso nem sempre foi a regra, existindo diferenças entre os acompanhamentos nas montanhas de El Salvador.

É interessante notar que a tarefa de cozinhar não era dada aos homens. Muitas vezes, ir para a cozinha, era uma punição. Isso acontece até hoje em ambientes militares: a cozinha é o castigo.

Como era cozinhar na guerrilha em El Salvador?

Não era uma tarefa fácil, pois cozinhava-se para muitas pessoas em ambientes improvisados. Para tanto, constituiu-se um sistema organizacional visando o efetivo funcionamento da cozinha. As mulheres que ficavam nos acampamentos formavam grupos de cozinheiras, que deveriam delimitar os dias de trabalho de cada uma delas, quando houvesse provisões, deveriam entregá-las nos locais específicos, e organizar o transporte dos alimentos para os acampamentos. O número de dias de cozinhar dependia de sua situação econômica e do número de filhos de cada uma delas.

O trabalho na cozinha nesses acampamentos era uma missão árdua. Às vezes deveriam cozinhar para 100 pessoas, por exemplo, e o faziam à noite e de dia, doentes ou na chuva. E, por ser extenuante, em muitas situações não tinham com quem dividir a tarefa. “(…) era mais fácil ser combatente do que cozinhar”, afirmou uma das guerrilheiras. (Mujeres y Montana. p. 131)

Essa relação com o alimento em uma situação de guerra sempre é complicada, pois há escassez e os que detém o poder da força costumam tomar da população civil. Entre os salvadorenhos, a comida se converteu em um vínculo de forte identificação entre os guerrilheiros e a população civil, pois os combatentes pediam comida e não a tomavam como o exército.

Nesta dura vivência, existiam momentos de criação de vínculos e, porque não, memória afetiva. Essa lembrança marca um dos relatos:

Cada vez que havia incursões e operações, a solidariedade era tão bonita, ou seja, quando havia perigo, todos nos uníamos, conversávamos todos, comíamos uma colher de leite do único saco de leite que alguém tinha, comíamos sopa maggi com qualquer raiz que encontravamos. No geral, era bonito. (Mulheres e Montanha. p. 128)

A potência feminina e a comida

Os relatos da perda e da violência envolvendo as mulheres em situação de guerra sempre são impactantes. Muitas mulheres se tornaram mães na guerrilha salvadorenha, por estupro ou por escolha. Muitas tiveram seus filhos, outras os abortaram. Muitas foram mal vistas e não se importaram, outras questionaram esses comportamentos. Muitas foram julgadas e, até mesmo condenadas, mas, de fato, deixaram a sua marca na história.

O cozinhar requer todo um planejamento que vai desde a obtenção do alimento, passando pelo seu preparo e apresentação à mesa. Isso quando é para uma família, para muitas pessoas é muito mais complexo. Foi a partir da força dessas mulheres que foi possível manter e suprir tanto homens quanto mulheres nesse espaço árduo de luta que é a luta armada, especialmente no ambiente montanhoso de El Salvador.

Cozinhar é revolucionário.

Referências:

Os relatos foram retirados da obra: 

VÁSQUEZ, N.; IBAÑEZ, C.;MURGUIALDAY, C. Mujeres y Montaña: vivencias de guerrilleras y colaboradoras del FMLN. San Salvador: Centro Cultural de España en El Salvador, 2020.

Para maiores informações:

SUE-MONTGOMERY, T.; WADE, C. A Revolução Salvadorenha. São Paulo: UNESP, 2002.