As “azogadas”: como as alagoanas Marta e Nise ousaram revolucionar o Brasil
Conterrâneas mudaram a trajetória de seus ofícios no país. Mas foram muitas as tentativas de impedi-las de sonhar
Por Kelly De Conti
“Uma das maiores brasileiras de todos os tempos”. Essa frase é comumente usada em referência às alagoanas Marta Vieira da Silva e Nise Silveira. Para chegar a esse patamar, as “azogadas” (gíria regional que se refere a uma pessoa inquieta) não aceitaram o que o destino impunha a elas.
A pequena Dois Riachos foi o berço de mulheres que remaram contra muitas marés. Foi lá que Dona Tereza criou, sozinha, seus quatro filhos. Na enxuta casa, era preciso dividir todos os recursos. O espaço, a comida e a bola de futebol.
Apesar da resistência do irmão José, Marta insistia em entrar no campinho de terra perto de casa para jogar bola. Mesmo descalça, ela não temia as divididas e os carrinhos que os meninos davam para apelar contra sua habilidade.
Seis décadas antes, a jovem Nise também se colocava entre os meninos. Nascida em Maceió, capital alagoana, mudou-se para cursar a Faculdade de Medicina da Bahia, onde era a única mulher entre os 158 alunos da turma.
Mas a correnteza que insistiria em empurrá-la para o “papel de mulher” viria mais forte quando se especializou em psiquiatria. A doutora Nise recusava-se a aplicar as comuns terapias agressivas da época, como o eletrochoque. Ela acreditava na eficácia do tratamento humanizado.
A revolução de sua técnica vinha da análise dos pacientes enquanto pessoa, sem tratá-los como alguém que deveria ser excluído da sociedade, como era o normal na época. E também da proposta de atividades, como a pintura e a modelagem em argila, para permitir a eles expressar suas emoções e conflitos internos.
“É necessário se espantar, se indignar e se contagiar. Só assim é possível mudar a realidade”, dizia a médica.
Os resultados mostravam o caminho de cura e autoconhecimento. Mas sua abordagem incomodava os médicos mais conservadores. Muitos, inclusive, tentaram afastá-la das atividades.
O mesmo aconteceu com a filha de dona Tereza. O talento fora do comum levou Marta à escolinha de futsal do Seu Tota. Mesmo jogando entre os meninos, ela demonstrava habilidade e força, o que fazia os olhos do técnico brilharem. Logo, ele resolveu levar seu maior talento para a disputa de uma das principais competições da região, em Santana de Ipanema.
Marta conquistou o título logo na primeira participação na Copa Infantil de Futsal, da Associação Atlética do Banco do Brasil (AABB). Mas, na segunda vez, o técnico de uma das equipes quis impedir que ela jogasse. Em entrevista ao Esporte Espetacular, em 2018, a Rainha se emocionou ao lembrar do episódio.
“Chegou o treinador de outra equipe e falou: ‘se vocês deixarem a menina jogar, eu vou tirar o meu time’. Aquilo me doeu tanto… Eu falei ‘puxa, estou fazendo algo errado? Então, por que Deus me deu esse talento?’”, contou Marta com a medalha do torneio nas mãos e água nos olhos.
Ela acabou proibida de jogar após mudança no regulamento, que passou a permitir apenas meninos. Mas isso não a parou. Conseguiu testes para os times femininos do Vasco e do Fluminense.
Com o dinheiro dos bicos que fazia para ajudar a pagar as contas de casa, Marta entrou no ônibus em direção à oportunidade de mudar sua vida. Com 14 anos, foi aprovada no cruzmaltino e precisou remar, sozinha, no Rio de Janeiro. Apenas três anos depois, em 2003, disputaria sua primeira Copa do Mundo. Hoje, já foi escolhida como melhor futebolista do mundo por seis vezes.
No caso de Nise, nem mesmo a prisão durante o período ditatorial do Estado Novo, acusada de “comunismo”, foi suficiente para pará-la. Detida, ela foi enviada ao Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro, que também servia como prisão para pessoas consideradas subversivas pelo regime. Mesmo presa e em condições adversas, driblou os obstáculos e aplicou suas técnicas para o tratamento de saúde mental.
Ela ficou 18 meses nessas condições. Quando saiu, mostrou sua habilidade científica. Criou novas técnicas de tratamento, como a interação com animais como parte do processo terapêutico, hoje conhecida como “Terapia Assistida por Animais” (TAA).
Aquilo parecia inimaginável no Brasil daquela época, mas ela compreendeu, a partir de seus estudos, que a presença dos animais ajuda a reduzir a ansiedade e a estabelecer laços de confiança e afeto com os pacientes.
As imparáveis alagoanas sofreram com as – muitas – tentativas de apagarem seus brilhos. O enorme impacto e legado para suas profissões é inegável e, além disso, são inspirações de mulheres “azogadas” do Brasil e do mundo inteiro.
Texto produzido em cobertura colaborativa da NINJA Esporte Clube