Por Ben Hur Nogueira

“Aquarius” é o tipo de película que nos transborda memória, perda, redenção, resiliência e sobretudo a importância da preservação. Para uma película lançada em um momento politicamente tumultuoso que foi o ano de 2016 onde ocorreu o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, durante muito tempo durante a divulgação da película, “Aquarius” foi visto como um filme político, mas por mais que a película tenha uma mensagem relacionada ao status quo do Brasil atual, a maior mensagem que seu realizador Kleber Mendonça Filho  queria transmitir não era uma visão política, mas um detalhe sórdido que passou despercebido por muitos, um detalhe que muda a maneira que assistimos a película, um detalhe que nos faz enxergar a urbanização, a gentrificação com outros olhos. “Aquarius” lida com uma miríade de temas em sua camada, contudo o detalhe que mais me chamou atenção foi sua sapiência em retratar a diferença real entre o valor e preço.

A trama narra Clara, a última moradora de um edifício de classe alta na praia de Boa Viagem que passa a lidar com uma pressão imposta por membros de uma construtora que quer demolir o edifício e transformar ele em um projeto arquitetonicamente mais modernizado. 

De antemão, não foi a primeira vez que Kleber Mendonça Filho lidou com memória como um espectro a ser maximizado em um de seus filmes. Tanto seus curta-metragens “Eletrodoméstica”, “Vinil verde” e “A menina do algodão” quanto seu primeiro filme de ficção “O som ao redor”, lida com espectros referentes a como a memória é utilizada no cinema de maneira mais particular, onde a preservação da memória torna o ambiente ávido moralmente. A memória é exemplificada em várias vertentes e seu cinema é nitidamente côncavo para a preservação da memória que sobrevive e resiste em uma área que hostiliza tudo que foi construído, onde o novo tenta imperar enquanto o velho é tido como esquecido e eventualmente vulnerável, mas é a partir deste estigma de imposição sobre a suposta vulnerabilidade da presença da memória que tenta sobreviver naquele local que vemos a força e resiliência que torna-se operacional de onde não se espera. Falar de “Aquarius” é falar sobre um país sem memória  que nega seu passado e aceita o novo sem pensar nas consequências. 

A resistência de Clara em meio a empresa que tenta comprar seu apartamento para todos é tida como um delírio, onde ela é tida como teimosa inclusive por sua própria filha que enxerga na possibilidade de ganhar algum lucro da mãe caso o apartamento seja vendido já que passa por dificuldades financeiras. A mensagem que o filme quer passar sobre a importância da preservação da memória poderia ser outra se não fosse pelos vinte minutos iniciais da trama onde vemos a presença da família de Clara no apartamento durante uma festa familiar. É neste momento onde vemos toda presença da memória incluída na trama. A família, amigos, a mobília, a música presente, tudo se torna parte do afeto que o local transmite e falar de Clara é também falar de sua tia Lúcia, cuja a aparição ocorre nestes minutos iniciais e ali vemos reminiscências da personalidade resiliente de Clara na persona de Lúcia. 

Tia Lúcia é a figura central dos primeiros vinte minutos da película pois é dela a festa que ocorre no apartamento de Clara. O filme não fala do parentesco de Clara, mas subitamente solidifica a importância da figura de Tia Lúcia na vida de Clara no decorrer do filme. Lúcia foi uma mulher perseguida na ditadura e que lutou anos e anos por um amor proibido que nunca pôde ser assumido, e durante a sequência da festa, a película mostra como a preservação da memória local ainda se encontra presente na vida de Lúcia onde através de um singelo olhar para um armário que Lúcia dá, onde somos transportados para um tempo onde Lúcia está jovem e se encontra relacionando sexualmente com o homem que sempre amou contudo nunca pôde assumir publicamente seu romance (como vai ser descrito pela própria Lúcia durante a festa), e perto se encontra o armário que anos mais tarde estaria presente no apartamento de Clara. Apesar de curta, a sequência mostra a importância da memória de Lúcia daquele momento tão especial com o homem que sempre amou. O armário logo se torna para Lúcia, um arauto temporal que a permite se deslocar entre o espaço e tempo para se encontrar com o amor de sua vida. Não é sobre o preço do armário, mas quanto emocionalmente o armário custa para Tia Lúcia. 

Na mesma sequência da festa de Lúcia vemos um momento de catarse familiar testemunhado por Clara. Tudo é formidável, as luzes remetem a nostalgia dos anos 1980, a vizinhança está presente e a presença das crianças brincando logo no futuro tem uma importância memorial para Clara que terá nesta memória, assim como outras, a presença do real valor do lugar. A atmosfera da sequência inicial torna a nostalgia um fator que o diretor impõe para enfatizar a presença das memórias para Clara que, ainda que nostálgicas, estão presentes na mente de Clara que compreende a importância da manutenção do lugar. 

É neste cenário que entendemos o motivo da resistência de Clara  que ocorrerá na trama durante o assédio provido pela construtora. A sequência inicial da trama lida com o afeto nostálgico que a atmosfera local tem para Clara, não é e nunca foi para ela o preço monetário, mas sempre foi o valor memorial que tornou o lugar tão significativo e digno de resistência. A presença da memória física como discos de vinil, cartazes de cinema e fotografias familiares, fortalece a tese de Clara que enquanto estiver viva, cuidará do local da mesma forma que o local cuidou dela com tanto afeto e memórias que ainda se propagam através da singularidade atmosférica provida pela memória.

Uma sequência clara da película onde vemos Clara compreender que sua luta pela manutenção do local é algo necessário, é durante uma sequência onde a namorada de seu sobrinho toca “Pai e mãe” de Gilberto Gil enquanto ela junto de sua família vê fotos antigas na sala de estar. Nesta singela cena, não vemos suas memórias, mas vemos sua reação referente a canção que a faz lembrar de uma reminiscência referente ao passado. Não sabemos o que é, mas por sua reação vemos que é bom e nostálgico. É nesta cena que vemos entre olhares cruzados de familiares que não dão a mínima para a canção apresentada, uma reação de Clara com uma canção que a faz lembrar de algo nostálgico que ocorreu no passado e muito provavelmente naquela residência. 

Clara lida com a memória da maneira mais dilemática possível, ela cuida do ambiente da mesma forma que cuidava nos anos 1980, e ao mesmo tempo que vemos a construtora impondo festas, incêndios no quintal de Clara e até um vespeiro como cartada final, vemos uma força vindo não apenas de Clara, mas de toda nostalgia que o ambiente já passou. Durante uma sequência onde é tocado “Quintal do vizinho” de Roberto Carlos, Clara dança na sua sala de estar enquanto um pano que cobria um prédio limítrofe voa atrás dela como se fosse um fantasma a seguindo, contudo ela não o vê pois a presença da memória afetiva que ela sente pela residência, impede que ela enxergue a malevolência como uma força triunfante, mas é na memória onde vemos sua maior força, sua real resistência.

“Aquarius” é uma película que lida com o ímpeto do novo contra a sabedoria do velho. Aqui temos uma construtora que nega a existência de um prédio que ainda existe contra uma senhora que utiliza de sua sapiência referente a memória que ela possui em termos de sua residência para propagar sua força e recusar tornar suas memórias em algo esquecido. Tanto na sequência inicial quando vemos Tia Lúcia resistindo em manter a memória viva através de sua força, quanto no desenrolar da trama onde vemos Clara seguindo os passos de sua tia mantendo sua resiliência em manter a atmosfera intacta em meio tanta hostilidade e desonestidade vinda da construtora que não enxerga o valor emocional do ambiente, mas sim o preço e sobretudo o lucro que podem adquirir.

A utilização da canção “Hoje” de Taiguara não parece ser por acaso. A canção fala sobre um momento presente onde Taiguara (o cantor mais censurado da ditadura militar) lida com tanta hostilidade em meio a sua segurança referente a memória. Assim como Clara, Taiguara também teme as consequências, mas permanece resistindo em meio a hostilidade que enfrenta. Clara assim como Taiguara busca refúgio na nostalgia, e nos versos “Meu quarto escuro é inerte como a morte” da própria canção, temos uma própria exemplificação de como a vida da personagem se torna um pesadelo interminável quando as ameaças da construtora tornam-se cada vez mais agressivas e a memória acaba se tornando o único refúgio da protagonista. 

Na estrofe final onde Taiguara diz “Eu não queria a juventude assim perdida, eu não queria andar morrendo pela vida, eu não queria amar assim como eu te amei”, vemos a falta de compreensão do novo, a falta de perspectivas referente a alguém que sonha e por fim um eu lírico que lamenta amar algo ou alguém mesmo sabendo que isso torna-se inviável. Para Taiguara isso era a situação da ditadura, para Clara, a falta de compreensão de quase todos que negam a importância da avidez da memória como algo que deve ser preservado.

“Aquarius” nos mostra que o que nos faz especiais não é a aceitação, mas a inconformação de aceitar algo que não concordamos. A película lida com a memória como um fator que deve ser priorizado mesmo estando em um estado de calamidade onde a memória é apagada por quererem valorizar algo efêmero. Em “Aquarius” vemos que o preço, qualquer um estipula, mas o valor, somente nós sabemos. Em um país sem memória, preservar a memória é um ato de resistência, é um ato de amor.