‘Apenas Coisas Boas’ e o desejo fluido de Daniel Nolasco
Ambientado na zona rural goiana dos anos 1980, o filme transforma a aridez em espaço de afeto e ruptura, revisitando a terra como território de desejo, memória e resistência masculina
Por Hyader Epaminondas
Eu não conhecia o cinema de Daniel Nolasco. E talvez por isso “Apenas Coisas Boas” tenha me vindo como uma surpresa durante a sua exibição no Festival MixBrasil, com sua narrativa dividida em duas partes para dialogar sobre o amor e o desejo que cresce em seu rastro, como fricção ardente que encontra asfalto.
Há algo de singular e autoral em sua maneira de filmar um olhar que ultrapassa o regional, como se o cineasta brotasse da própria terra, misturando o pó vermelho, o suor e o desejo numa linguagem profundamente sensorial. Filmando a atmosfera de Goiânia e seus arredores nos anos 80, ele transforma o espaço em um estado de espírito que se expande com a urbanização, enquanto sua câmera encontra no corpo uma extensão da paisagem, no desejo uma força natural que rompe em cores intensas, no sol que queima a imagem fria de neblina e no suor que parece evaporar da tela.
Nolasco transforma essa visualidade em afeto e tensão enquanto tenta transcrever tesão em tempo real. A paleta ultra-saturada em cores específicas atravessa tanto a aridez do cerrado quanto a intimidade dos corpos. A textura visual do filme é a mesma do desejo que filma: quente, excessiva, viva.
A relação entre Antônio e Marcelo nasce nesse calor, um encontro onde amor e ameaça se tocam como duas lâminas que brilham sob o sol, misturando carne, silêncio e aquela tensão elétrica que só existe quando o desejo ainda não sabe se deve avançar ou recuar. Eles se aproximam como quem encosta a mão num ferro em brasa, conscientes do risco da queimadura, mas incapazes de resistir ao magnetismo que vibra entre os dois.
Amor, Ausência e a Sombra do Desaparecimento
À medida que o filme avança, o romance sofre uma metamorfose. A chama que antes iluminava começa a projetar sombras longas e sinuosas, e o relacionamento se estreita até se transformar numa espécie de cárcere emocional, onde o desejo circula inquieto, batendo nas paredes como um animal preso. O desaparecimento funciona como rachadura e espelho ao mesmo tempo, revelando que aquilo que chamamos de amor frequentemente nasce mais das imagens que criamos do que da presença real do outro.
O filme expande esse território entre o amor imaginado e o amor vivido, explorando o abismo entre a fantasia febril de amar e a geografia, por vezes árida, da convivência. Ele questiona o que sobra quando retiramos o verniz da idealização e encaramos o outro sob a luz crua do cotidiano, sem adornos, sem promessa de eternidade, apenas com as marcas deixadas por quem teve coragem de sentir demais.
O diretor constrói o romance como um mistério sensorial. Há um suspense que se insinua em paralelo à história de amor, uma vibração inquieta que parece vir da própria terra quando se inicia a segunda fase da trama. O espaço árido, filmado como organismo pulsante, abriga a tensão entre a masculinidade performática e a vulnerabilidade do desejo. A virilidade rural, onde o gesto contido, o corpo rígido e o trabalho bruto se tornam, nas mãos de Nolasco, um campo aberto à contradição e ao prazer.
O erotismo, ainda que radicalmente explícito, escapa à mera sexualidade: pulsa no olhar, num gesto de voyeurismo que, em vez de resvalar para o pornográfico, se ergue como expressão do belo e do sensível. A câmera observa os homens como quem busca decifrar uma paisagem com cuidado, com curiosidade, com perigo. O corpo masculino, frequentemente associado à dureza e ao silêncio, se revela permeável, febril, quase sagrado. É ali que o filme encontra sua linguagem: o excesso como forma de verdade.
O que Nolasco realiza é um “Brokeback Mountain” à brasileira, destilado como aquele café passado no pano que carrega a história. Ele cria um Titanic rural em pastagens castigadas e quase degradadas, ao mesmo tempo em que atravessa a loucura e a insanidade sufocante de “O Iluminado”. Tudo isso aparece filtrado como um preparo artesanal: às vezes um coado lento que deixa extrair o aroma quente de Goiás, às vezes um espresso curto de imaginário latino-americano, concentrando afeto, suor, fantasia e território em um único gole cinematográfico.
O filme atravessa quatro décadas sem perder o pulso entre o passado e o presente. Ele derrapa nessa segunda fase, mas o desejo persiste, como se a memória fosse também uma forma de toque. Barulho de couro rangendo, o som metálico da motocicleta e a aura de uma pornografia vintage formam o primeiro convite sensorial da produção. Porque, antes de ser um filme sobre o amor, ele é também sobre o calor do desejo, um desejo que não pede licença.
No universo queer de Daniel Nolasco, o desejo queima devagar, mas deixa marcas: tinge tudo de vermelho, risca o mundo com fricção, vibra entre o couro, o metal e a pele. Cada gesto pulsa como um ícone desse erotismo sem pudor, onde o afeto e a fome se confundem até virar uma única matéria sensível. Um filme que ousa sentir e que faz a tela sentir junto.



