Balas perdidas sempre acham corpos periféricos

Ilustração de Renato Cafuzo

Por André Menezes

As raízes da violência nas favelas do Rio de Janeiro são tão profundas, que conseguem impactar a rotina de milhares de pessoas que buscam apenas um pouco de paz em seu dia a dia, o que afeta também a dinâmica empreendedora e econômica desses locais. A mesma violência que teve seus primórdios por volta de cinco décadas atrás, ainda parece peneirar a população periférica carioca. É o que também revela a pesquisa inédita “Favelas na Mira do Tiro: Impactos da Guerra às Drogas na Economia dos Territórios”, que será lançada no próximo dia 18 de setembro pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC).

Com o objetivo de revelar perdas causadas pelos tiroteios envolvendo agentes de segurança do Estado aos moradores e comerciantes em favelas no Rio de Janeiro, o estudo mostra que quase 90% dos moradores relataram a ocorrência desses episódios nos complexos estudados, evidenciando a rotina de violência nesses territórios, que são historicamente criminalizados, e sujeitos a diversas restrições, como acesso a meios de transportes, ao trabalho, interrupção no fornecimento de serviços essenciais, como o de água, energia e internet, além de provocar o fechamento temporário do comércio local.

Esta é a quarta etapa do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, que reforça o debate sobre os impactos da proibição e da guerra às drogas com dados e análises inéditas em quatro frentes de trabalho: segurança e justiça, educação, saúde e território. Todos os resultados demonstraram que, além de mortes e violações de direitos, a guerra às drogas custa caro aos cofres públicos. O estudo “Um Tiro no Pé” revelou o gasto anual de R$5,2 bilhões com a implementação da Lei de Drogas (11.343/06) pelo Sistema de Justiça Criminal dos estados de São Paulo e Rio de Janeiro.

“A pesquisa do projeto “Drogas: Quanto Custa Proibir”, do CESeC, demonstra como a guerra às drogas, materializada pelas operações policiais, provoca dor e sofrimento, mas também prejuízos enormes para a vida dos moradores de favela e para a economia desses territórios. Por causa dos tiroteios, pessoas são impedidas de trabalhar, tem inúmeros danos em suas casas e bens e a economia local é seriamente afetada”, afirma a antropóloga Paula Napolião.

A segunda etapa, “Tiros no Futuro”, demonstrou que 74% das escolas cariocas vivenciaram pelo menos um tiroteio com presença dos agentes de segurança em seu entorno em 2019, o que prejudica o desempenho escolar e a renda futura dos estudantes. “Saúde na Linha de Tiro”, terceira etapa, analisou o impacto da guerra às drogas na saúde e no acesso aos equipamentos públicos de saúde para os moradores de favelas cariocas. Finalizando esse ciclo de pesquisas, “Favelas na Mira do Tiro” aponta que esta violência policial provoca danos financeiros tanto para moradores como para comerciantes das favelas analisadas.

“Esses números certamente não dão conta de expressar o quanto isso impacta o dia a dia das pessoas, que pagam um preço alto apenas por viverem em favelas. A guerra às drogas tem cor e CEP muito bem definidos”, ressalta Paula Napolião.

Os territórios

Para esta etapa do estudo, foram selecionados dois territórios com a maior incidência de tiroteios decorrentes de ações policiais entre junho de 2021 e maio de 2022, segundo dados do Instituto Fogo Cruzado. A pesquisa foi realizada em duas etapas. A primeira teve como objetivo mensurar o impacto desses episódios na vida dos moradores. Para tanto, foram identificados os territórios mais afetados por esses tiroteios: o Complexo da Penha e o Complexo de Manguinhos.

Já na segunda, foram avaliados os impactos para comerciantes e prestadores de serviços dessas localidades. Foram selecionadas as duas favelas mais afetadas por tiroteios de ambos os Complexos: Vila Cruzeiro, que registrou 8 tiroteios no período estudado, e Mandela de Pedra, afetada por 10 episódios de violência armada, considerando um raio de até 400 metros a partir do centro dos territórios.

Originado a partir de um quilombo, o Complexo da Penha está localizado na Zona Norte do Rio de Janeiro e tem uma população de 36.273 habitantes, sendo 9.020 moradores na Vila Cruzeiro, segundo o Censo de 2010. Já o Complexo de Manguinhos, também situado na Zona Norte da capital carioca, teve seu processo de ocupação iniciado por funcionários do antigo Instituto Oswaldo Cruz, atual Fiocruz. O Complexo reúne 21.846 habitantes sendo 2.439 moradores na Mandela de Pedra, segundo dados do Censo 2010.

A pesquisa entrevistou 800 moradores maiores de 18 anos dos Complexos da Penha e de Manguinhos, sendo 400 em cada, e mapeou todos os pontos de comércio existentes nas favelas Vila Cruzeiro e Mandela de Pedra. Dos 367 estabelecimentos identificados, 303 estavam em funcionamento no momento da aplicação dos questionários.

“A guerra às drogas afeta toda a sociedade brasileira. Mas são os moradores de favelas, pobres e negros os mais prejudicados, inclusive financeiramente, por essa política do Estado. Com a pesquisa, queremos chamar atenção da sociedade para essa realidade”, diz Julita Lemgruber, coordenadora do CESeC e do projeto Drogas: Quanto Custa Proibir. “Nesta lógica, predomina uma visão racista e estereotipada desses territórios que naturaliza uma série de violações de direitos aos moradores, o que não seria tolerado nas áreas ricas da cidade. Os dados coletados nesta pesquisa evidenciam os impactos individual e coletivo da violência policial”, completa.

O relatório completo pode ser acessado através deste link.

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