Foto: Adriana Carolina Fotografia

Para as meninas pretas do final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, que acompanharam a primeira versão da telenovela Chiquititas, no SBT, poder ver que uma das protagonistas das intrigantes histórias do orfanato Raio de Luz era uma criança negra, a eterna Pata, foi extremamente importante para se criar referências positivas numa sociedade estruturalmente racista. É o que acredita também a atriz e apresentadora Aretha Oliveira, que deu vida à marcante personagem.

Na coluna de hoje, ela fala sobre os seus trabalhos para além do audiovisual, o projeto Trajetórias Pretas que Inspiram, que impactou diversas pessoas pretas na época da pandemia, e como foi transformador na sua vida poder fazer uma personagem tão forte, que foi capaz de marcar uma geração inteira.

Leiam com toda a nostalgia do mundo! Com vocês, Aretha Oliveira, a nossa eterna Pata de Chiquititas: 

 

André Menezes Minha querida, quero começar essa entrevista falando de nostalgia. Como os fãs da versão da novela de 1997 ainda te recebem? 

Aretha Oliveira Me surpreende até hoje o quanto as pessoas lembram e reconhecem a Pata, a Aretha. Hoje em dia, eu acho que foi mudando com o tempo, antes quando as pessoas me encontravam, era muito a Pata. E eu acho que as redes sociais trouxeram uma proximidade muito grande e hoje é muito comum as pessoas olharem e falarem: “Aretha, eu te acompanho, eu te acompanho desde novinha, você marcou a minha infância”. E vem sempre carregada de uma nostalgia muito boa, muito bonita.

Chiquititas marcou de uma forma muito especial a geração dos anos 1990, porque eu digo que nem todo mundo teve uma infância feliz. Mas quem teve, se conecta com as Chiquititas de um lugar muito bonito, das brincadeiras, da escola, das amiguinhas, das personagens. E quem não teve uma infância tão legal, era aquele momento de esperança, de se conectar com algo que trazia uma mensagem muito positiva. Então, sempre é uma memória bonita, sempre é uma memória de muito carinho, de muito amor, sabe, de muito afeto, de despertar aquela criança interior mesmo.

Então, a gente vai crescendo e essas pessoas têm a mesma idade. Nós somos muito da mesma geração. E essa sensação de se reencontrar com a sua criança, é algo muito bonito. Eu nunca tive um encontro estranho, algo que, sabe, que foi ruim ou negativo, é sempre de um lugar de muito carinho.

 

André Menezes A sua atuação como atriz se manteve no teatro, com dublagens e projetos audiovisuais, inclusive fora do Brasil, como na Argentina. Você pensa um dia em voltar a fazer novelas?

Aretha Oliveira Sim, eu sou atriz, e por mais que, em alguns momentos, eu não esteja atuando, essa é também a minha profissão, é algo que eu amo fazer. Quando começou a pandemia, eu estava no teatro, e isso foi interrompido para aquele momento. Mas, de alguma forma, a gente sempre segue nesse mundo, mesmo que hoje muito no on-line, tentando buscar novos caminhos, mas eu tenho vontade, sim, de continuar atuando. É algo que me apaixona, que eu comecei muito novinha; comecei a trabalhar na TV com uma novela, quando eu tinha 5 anos, então, é uma paixão que está na minha vida desde sempre.

 

André Menezes Como você vê a questão da representatividade daquela época em comparação com a de hoje, sendo uma atriz negra naquele projeto que marcou uma geração e onde essa discussão nem sequer existia? 

Aretha Oliveira Então, André, como você mesmo diz, era um tempo em que a gente nem falava sobre isso, não era pauta, era tão naturalizado essa falta de representatividade que ninguém questionava isso. A gente foi entender as consequências com os anos, e que bom que as coisas estão mudando. Mas, naquele momento, em Chiquititas, eu tinha 12 anos, então eu não sabia o quão importante era a minha presença preta naquele lugar, naquele contexto, e você sabe que, conforme os anos foram passando, que eu fui tendo consciência do quão importante foi a Pata, do quanto a Pata foi essencial na vida de muitas pessoas. Muitas meninas negras.

Você não sabe a quantidade de vezes que escutei de pessoas que, a partir da Pata, eles puderam ser alguém nas brincadeiras. Não é nem só sonhar que poderia alcançar um lugar, como atriz, como artista, não é só nem essa referência, a gente nem está falando disso. Quando a gente é criança, talvez ainda não exista essa consciência, mas o não poder ser alguém nas brincadeiras é muito cruel, a gente não se vê em lugar nenhum, então você não pode ser aquela boneca, você não pode ser aquele personagem da novela porque ela não tem nada a ver com você. Então, as crianças simplesmente dizem “não, essa sou eu, você não combina com ela”.

E de repente elas tinham uma Pata para ser, uma personagem importante, uma personagem que ficou do começo ao fim da novela, uma personagem que tinha um destaque, então elas tinham uma personagem para ser pela primeira vez com todas as amigas de igual para igual, não era um personagem inferior. E eu só fui entender, eu e todas elas, porque assim, eu acho que a gente foi entendendo isso ao longo do tempo, o quão importante era a Pata para muito além de ser simplesmente uma Chiquitita, de ser mais uma órfã do orfanato. 

E acho que hoje, uma menina, uma pré-adolescente de 12 anos, 13 anos, que começasse um trabalho na televisão, teria muito mais consciência do lugar que ela ocupa, da importância que ela ocupa, do que há 26 anos, 27 anos atrás. Além disso, as redes sociais abriram uma porta muito grande para esse debate, que foi quando todos começaram a ter um pouco mais de voz e apontar algumas questões.

 

Foto: Adriana Carolina Fotografia

André Menezes Não posso deixar de perguntar sobre o Projeto Trajetórias Pretas que Inspiram, que você fez em parceria com a Fernanda Souza. Como foi pra você fazer esse projeto? O que mais te marcou nas histórias que foram contadas?

Aretha Oliveira Olha, o Trajetórias é muito especial para mim. Ele é um projeto meu e da Fernanda Souza, minha amiga e irmã de alma, de vida. Para situar, no primeiro ano de pandemia, eu vinha numa angústia muito grande, e além da angústia pandêmica, daquela situação tão inusual e assustadora que a gente estava vivendo, a gente vinha acompanhando histórias muito difíceis do nosso povo, era ligar a TV e cada hora uma tragédia diferente, e teve o lance de George Floyd, aquele foi o ápice, e eu comecei a não conseguir ver TV, porque me fazia muito mal sempre ver a gente conectado com alguma tragédia. 

Eu lembro que um dia conversando sobre isso com a Fernanda, eu falei: “eu tô me sentindo paralisada, eu não estou tendo força quase para entrar na internet, porque é só notícia ruim, é só tragédia, eu não aguento mais ver os negros sempre ligados a alguma história trágica”. Até fisicamente isso estava me afetando, sabe? Passava já do emocional, e eu falei: “eu preciso encontrar força para fazer alguma coisa, porque está me paralisando tanta angústia”, e ela falou: “o que você for fazer, conta comigo, vamos unir forças”.

E aí eu recebi uma mensagem, que foi a minha primeira trajetória, que foi a da Erica, bem naqueles dias, naquela semana, que para mim foi como um sinal, uma mensagem muito carinhosa de uma menina negra, de uma mulher negra, hoje advogada. Falava do quão importante tinha sido para ela a Pata e Chiquititas, que ela havia morado num orfanato, e era um momento de muita esperança para ela e que ela estava muito feliz de poder me acompanhar nas redes e tal. E esse princípio de história me gerou muita intriga, uma garota negra, que morava num orfanato, que criou essa conexão tão forte com a Pata, e eu quis saber mais dela, e eu falei, e o que você faz hoje em dia? Ela me contou que hoje era advogada. Eu falei: “mas como assim, me fala? Como foi essa caminhada?”.

Nós não somos só a pessoa que vai ser abordada por um policial e que vai, enfim, terminar muitas vezes numa tragédia. Existem outras possibilidades, existe gente que conseguiu trilhar um caminho bonito e a gente precisa falar sobre isso, que teve oportunidades. O que criou as suas oportunidades, e como elas fizeram isso? Porque eu fiquei muito me perguntando: como ela conseguiu, de perspectiva nenhuma, hoje ser uma baita advogada, com estudo super bacana e tal, como que ela fez isso? Porque, muitas vezes, as pessoas falam: “ah, quem quer muito consegue”, a gente sabe que não é assim.

Isso é uma falácia, não é? A gente sabe que a coisa não é por aí. Então, como que ela fez? E foi essa a minha curiosidade de entender como ela conseguiu. E pensei: vamos falar sobre isso, as pessoas precisam saber como criar caminhos que sejam possíveis.

E aí, dividindo isso com a Fernanda, eu falei: eu preciso contar histórias que estão dando certo, de pessoas negras que sejam referências para mostrar para o nosso povo que é possível. A gente é muito mais do que aparece nos jornais. E assim nasceu Trajetórias Pretas, com muitas histórias incríveis, como a sua, que para mim era isso, um momento de esperança. Confesso que muitas vezes não era fácil, e que tinham histórias bem pesadas, momentos muito difíceis.

Eu terminava muitas vezes as lives assim… nossa, eu não consigo nem te explicar, eu ficava naquela energia e pensando naquilo durante dias até eu conseguir me conectar com outra história, sabe? Pensando em quanto sofrimento houve ali no meio, de quão difícil é realmente, para além de ser possível, mas o quão mais difícil é para gente. Mas, eu acho que uma das coisas que posso ressaltar e que ficaram mais evidentes é o quanto a gente precisa de uma oportunidade, de alguém que acredite, de alguém que nos veja, sabe? E eu acho que por isso era tão legal compartilhar essas histórias em um perfil tão abrangente como o da Fê.

Para pessoas pretas, para pessoas brancas, para todo mundo. Porque todo mundo é muito importante nessa história. Para as pessoas pretas verem aquelas trajetórias, se enxergarem e entenderem que é possível, que existe uma possibilidade, que existe um caminho, por mais difícil que seja. E para as pessoas brancas terem consciência do quão mais difícil é, e do quanto elas precisam entender que elas têm que ser parte dessa mudança, de fazer esse movimento, de criar oportunidades.

Então eu acho que, para mim, isso é o que mais ficou, eu acho que o que mais tocava no meu coração era entender que para todo mundo a mensagem estava chegando, sabe? É incrível, é incrível. 

 

André Menezes E você se recorda, você lembra de alguma história, de todos os papos que você teve, de coisas que sempre apareciam, de relatos comuns entre os entrevistados?

Aretha Oliveira O que mais estava gritante para mim nas conversas é como, de repente, essa pessoa encontrou alguém, uma única pessoa, que foi a chave que ela precisava para abrir uma porta e construir toda uma caminhada. Sempre teve alguém que acreditou e deu uma oportunidade. Isso se repetia, em todas as histórias. É muito difícil a pessoa conseguir criar essa transformação sozinha. 

 

Foto: Adriana Carolina Fotografia

André Menezes  E quais são os seus projetos para os próximos anos?

Aretha Oliveira Então, apesar de ter bastante vontade, como comentei antes, de voltar a atuar, agora eu tenho a oportunidade de experimentar uma nova vertente como artista, que é ser apresentadora.

Já trabalhei como apresentadora em eventos, muita coisa, em empresas, on-line, mas agora eu vou apresentar um programa de culinária. Olha que diferente! No canal Sabor e Arte. É um projeto do Senac que vai falar sobre culinária, mas também com toque de empreendedorismo.

Estou muito feliz de estrear agora em dezembro. Está sendo muito gostoso, tem sido uma experiência muito bacana e estou muito contente.

 

André Menezes Qual legado você quer deixar?

Aretha Oliveira Eu tenho visto com o passar dos anos, através da minha história e dessa personagem tão forte que é a Pata, o quanto ela foi marcante, e o mais bonito é que, ao se conectar comigo e com essas memórias, as pessoas se conectam também com a sua própria história, sua infância e sua criança. Essa criança surge de forma espontânea e, para além do carinho que recebo, essas pessoas se encontram com elas mesmas, e arrisco dizer, com o melhor delas, porque nossa criança interior sempre vai despertar o que temos de melhor.

Então, eu adoraria que isso permanecesse, e que eu possa ser sempre um acesso, um gatilho positivo, para um reencontro com a partezinha mais pura e genuína de cada uma daquelas pessoas que me acompanham com tanto carinho.

 

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