Por Isabella Vilela

No dia 6 de setembro de 2001, o cinema brasileiro entrou em uma nova fase com a criação da Agência Nacional do Cinema (Ancine), instituída pela Medida Provisória nº 2.228-1/2001. Com a missão de regular, fomentar e fiscalizar o mercado audiovisual, a Ancine surgiu em um momento em que o setor cinematográfico brasileiro carecia de políticas públicas resistentes para sua expansão e consolidação.

Naquele ano, o Brasil tinha pouco mais de 1.650 salas de cinema e os filmes nacionais tinham pouca presença, com apenas 30 títulos lançados. Já em 2019, antes da pandemia, o cenário era bem diferente: foram lançados 153 filmes brasileiros, que representavam 9,5% das bilheterias em um mercado com 3.496 salas de cinema, sendo que 13,7% das sessões eram dedicadas a produções nacionais​. Esse crescimento observado mostra a transformação feita pela agência, que, desde sua criação, trabalha para tornar a indústria cinematográfica nacional autossustentável e fortalecer toda a sua cadeia produtiva.

Desafios iniciais e o papel de Gustavo Dahl

Gustavo Dahl, cineasta do Cinema Novo e primeiro diretor-presidente da Ancine, foi responsável por iniciar a estruturação da agência, focando principalmente na administração das leis de incentivo fiscal. Nesse período, a Ancine ainda não exercia plenamente seu papel regulador e promotor direto do cinema brasileiro.

A gestão de Manoel Rangel, cineasta que assumiu a presidência da Ancine em 2006, marcou um novo ciclo de expansão e fortalecimento institucional. Com um perfil político e bom trânsito com o governo da época, Rangel conseguiu aprovar leis importantes, ampliando o escopo da Ancine como peça-chave no desenvolvimento do audiovisual brasileiro.

Entre suas principais conquistas estão a criação do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) em 2006, principal fonte de financiamento para o cinema brasileiro, e a Lei 12.485/2011, que estabeleceu um novo marco regulatório para a TV por assinatura. Essa lei aumentou a demanda por conteúdo nacional nos canais de TV paga e introduziu mudanças na Condecine, o que resultou em um aumento dos recursos destinados ao FSA.

Com o FSA, a Ancine passou a apoiar todas as fases do audiovisual, desde a criação de projetos até a construção e reforma de cinemas. Em 2013, o programa Brasil de Todas as Telas foi um marco, expandindo a produção audiovisual para além do eixo Rio-São Paulo por meio dos Arranjos Regionais. Isso possibilitou a criação de editais em estados e cidades que antes não tinham políticas públicas voltadas ao cinema.

Esse período de crescimento trouxe uma diversidade inédita ao cinema brasileiro, resultando em grandes sucessos de bilheteria e filmes aclamados internacionalmente, como O Ano que Meus Pais Saíram de Férias, Tropa de Elite e Bacurau. A política adotada impactou todo o país, fortaleceu os polos de produção locais e ampliou o acesso ao cinema nacional em diferentes regiões e estilos.

Regulação e os desafios do mercado de VOD

Apesar dos avanços no fomento à produção, os desafios na parte regulação não são atuais. A participação do cinema brasileiro no mercado interno segue em amplo debate, e a agência ainda não conseguiu implementar uma regulação eficaz para o mercado de vídeo sob demanda (VOD), assunto cada vez mais relevante.

A falta de regulação para as plataformas de streaming criou um desequilíbrio em relação à TV por assinatura, sujeita a mais obrigações legais. Essa lacuna se manteve como um dos principais desafios da Ancine até então.

A partir de 2019, com o governo Bolsonaro, a trajetória de crescimento da Ancine foi interrompida por crises institucionais. O Tribunal de Contas da União (TCU) determinou a suspensão dos repasses do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) após identificar irregularidades, levando à paralisação de financiamentos. Além disso, Christian de Castro, diretor-presidente, renunciou após acusações de uso indevido de informações privilegiadas, contribuindo para a instabilidade da agência.

Nos últimos anos, a Ancine passou por um período de paralisia agravado pela pandemia de Covid-19 e pela falta de clareza do governo quanto ao futuro da instituição. Declarações do ex-presidente Jair Bolsonaro sugerindo a necessidade de “filtros” para aprovar projetos alimentaram preocupações sobre interferência política na agência, que acabou completando seus 20 anos em 2021 em meio aos temores de sua extinção.

Agora em 2024, ao completar 23 anos, a Ancine enfrenta o desafio de consolidar uma política pública para o audiovisual que seja efetivamente uma política de Estado e capaz de resistir às oscilações dos diferentes governos. A construção de diretrizes que assegurem a autonomia da agência frente a pressões políticas e de mercado é necessária para garantir que o cinema brasileiro continue a crescer e se diversificar.

O fortalecimento da regulação, especialmente no que diz respeito ao mercado de VOD e a retomada das políticas de fomento, são passos determinantes para que a Ancine possa cumprir seu papel de incentivadora do desenvolvimento do audiovisual brasileiro nas próximas décadas.