Ancestralizou, Maria Sueli: teórica sertaneja que retomou um signo da resistência negra, chamado Esperança Garcia
Maria Sueli foi professora, mãe, feminista, militante, pesquisadora, escritora, sócioambientalista e atuante junto às comunidades quilombolas. Professora faleceu aos 58 anos.
Por OcorreDiário:
Sarah Fontenelle Santos, Wilton Lopes, Luan Matheus Santana
Ancestralizou aos 58 anos, Maria Sueli Rodrigues de Sousa, teórica orgânica do povo, cuja prática de vida foi o exemplo para o bem viver. A mata e o campo foram seus lugares de inspiração e luta e hoje a recebem na sua maior glória e aquela que falava sobre o poder da ancestralidade, torna-se uma ancestral.
Do Saco da Ema, comunidade rural de Francinópolis-PI, ela partiu ainda criança experimentando as dores da desterritorialização de sua comunidade. Foi empregada doméstica quando mal podia alcançar a pia. Para lavar as louças precisava subir em uma cadeira. Subia nela com a resignação de quem sabia que precisava daquilo para estudar na cidade.
Como não poderia deixar de ser, é uma referência na luta feminista, onde construiu a União das Mulheres Piauienses (UMP) e mais tarde compôs a Frente Popular de Mulheres Contra o Feminicídio do Piauí.
Maria Lúcia Oliveira, amiga e companheira de militância conta “Essas questões que existem hoje, a Vara Maria da Penha, Casa Abrigo, Samvis, Central de Gênero e outras políticas foram frutos do congresso de 2014, onde a Sueli foi uma das que se sistematizou todas as propostas e depois saímos apresentando elas para vereadores, deputados, governador. Hoje essas políticas existem fruto de pensamentos e escrivivências da professora Sueli junto com outras mulheres”, lembra.
As contribuições de Sueli são de peso para a luta do povo preto, para a luta do campo, para a luta na cidade, para a luta das mulheres, para a América Latina.
Ela presidiu a Comissão Estadual da Verdade e da Escravidão Negra, entre os anos de 2016 e 2018, período em que organizou o dossiê científico de Esperança Garcia, que ganhou notoriedade nacional e tronou-se símbolo da luta por direitos e da resistência negra. Foi também secretária-geral da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil (2019-2022). Escreveu o dossiê de Esperança, como quem biografa a história da própria vida e de suas irmãs escravizadas até hoje pelo sistema capitalista.
Segundo nota da OAB nacional, ela desenvolveu estudos na área de gênero e socioambientalismo com enfoque nas populações tradicionais; novo constitucionalismo latino-americano; ensino jurídico crítico; Direito e relações raciais. “Vivências Constituintes: Sujeitos desconstitucionalizados” é sua obra mais recente, publicada em 2021.
Em defesa dos Povos, das águas e da Terra
Professora, mãe, feminista, militante, pesquisadora, escritora, sócioambientalista. O legado e as sementes plantadas por Sueli na sua trajetória tem fortificado e dados grandes frutos, com um longo histórico de mobilização social, atuou nas pautas socioambientais junto às comunidades do campo e quilombolas.
Ela começou sua participação no movimento social, por onde não poderia deixar de ser, labutando com as gentes do campo, onde ficou ombro a ombro na luta pela terra. Suas primeiras andanças nos caminhos vermelhos foram com o Sindicato de Trabalhadores Rurais de Francinópolis na gestão do Antônio Bispo (Nêgo Bispo, outra grande referência teórica do povo) , num conflito de terra, o da chapada da Luiza.
Aguerrida defensora dos direitos humanos, no grupo de pesquisa e extensão Direitos humanos e cidadania (DIHUCI), ela trava uma luta socio-ambiental, atuando junto às comunidades impactadas pelo modelo de desenvolvimento predador, tais como os quilombos de Contente e Barro Vermelho, que lutam contra os impactos da transnordestina. Co-criadora do Coletivo Antônio Flor, coletivo de advogados populares que atuam no campo e na cidade, em muitas lutas.
Desobediência epistêmica e ontológica
Sueli ao longo da sua jornada trabalhou em torno das cosmovisões/filosofias do Ubuntu, Bem Viver e Ukama, que foram duramente atacadas pelo colonizador e usurpadas dos povos invadidos. Sueli teve um papel decisivo na divulgação desses saberes nas universidades, escolas e outras instituições, que comumente invisibilizam os saberes ancestrais.
Em sua tese de doutorado, visibilizou os conflitos nas comunidades de Zabelê na Serra da Capivara, cujo o nome do trabalho é: O povo do Zabelê e o Parque Nacional da Serra da Capivara no Estado do Piauí : tensões, desafios e riscos da gestão principiológica da complexidade constitucional”.
Professora do curso de Direito da Universidade Federal do Piauí (UFPI), ela fez de suas vivências docentes um exercício para desobedecer a epistemologia e a ontologia do opressor colonizador. Ensinou a construir outros modos de pensar e outros modos de ser, semeando a resistência à possibilidade de uma vida comum. Sempre trouxe o entendimento de empoderamento de que todos somos iguais e autoras e autores das leis, constituintes. Eternizou ela em seu livro:
Mais tarde , fiz uma descoberta: as identidades todas se remetiam para uma outra, a identidade do sujeito constitucional, a de cidadã ou de cidadão, que exige uma perspectiva comunitária, coletiva! Não há visão de cidadania com um indivíduo isolado, atomizado! É preciso se colocar no lugar da outra pessoa, ver o outro como a si mesmo! Passei a chamar esta outra identidade de iguais pertencentes ao pacto de nação, que só se submetem às leis porque são autoras e autores destas leis! (SOUSA, 2021, p. 199).
Defensora da vida em comunidade, Sueli defendeu no Partido Solialista (PSOL), uma política da vizinhança e dos afetos. Foi candidata através da sigla a vereadora por Teresina nas eleições de 2020 e a governadora do Piauí em 2018, campanhas que mobilizaram as esperanças e puseram muitas gerações de lutadores e lutadoras nas ruas por um sonho coletivo.
Contra o desenvolvimento: Sueli nos conclama à re-envolver
O desenvolvimento tornou discurso onipresente para justificar as mais diversas agressões, quer seja na usurpação das terras indígenas e quilombolas, quer seja para o desmatamento das florestas, assassinato dos rios, poluição dos mares e muitos outros. Sueli nos abriu uma janela no tempo, para lançar um outro olhar sobre a representação do desenvolvimento em nossa sociedade, não como parte de um projeto de evolução social, mas como parte de amplo processo de separação, segregação e subalternização dos povos.
Em vídeo gravado em outubro de 2019, durante o Show da Resistência, Maria Sueli foi enfática: “eu sou contra o desenvolvimento”. Para ela, o objetivo desse “desenvolvimento capitalista” é des-envolver, ou seja, desfazer nosso envolvimento.
O caminho, para Sueli, é parar e voltar. Insurgir novas formas de pensar nossas relações sociais e políticas é uma forma de re-envolver os povos em um projeto social de fato coletivo, partindo de um outro imaginário, capaz de evidenciar a pluralidade de vidas e culturas que o projeto eurocêntrico racista busca apagar com o seu monismo desenvolvimentista.
Diante disso, Sueli aponta que os caminhos para resistência anticapitalista nos países colonizados devem seguir suas próprias histórias, memórias e modos de ser ancestrais. “A gente anima a nossa luta e o nosso desafio é viver sem destruir as outras vidas e entrar nessa sintonia. A gente precisa fortalecer essas resistências ontológicas e não podem ser fortalecidas pela epistemologia do trabalho, porque elas se relacionam, possuem suas próprias epistemologias e isso precisar entrar nos livros”, disse, em curso realizado em parceria com o Ocorre Diário, em maio de 2020.