Por Ben Hur Nogueira

Diferentemente de seus trabalhos pretéritos, em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” Glauber Rocha tenta solidificar uma mensagem possivelmente nunca vista no cinema nacional sobre o folclore brasileiro amplificando debates sobre justiça social, redenção, genocídio, imperialismo, miséria e religião colocando elementos do folclore nacional como prioridade e transformando o sertão brasileiro em um western (ou faroeste para os íntimos) recheado de referências populares e por que não, um misticismo que ocorre no terceiro mundo.

Glauber Rocha por si só era bastante inventivo. Trabalhava o realismo com o misticismo. O real e o imaginário se cruzavam constantemente em suas obras. Em “Terra em transe”, por exemplo, temos um país do terceiro mundo imaginário onde crises políticas ocorrem influenciando o poder e a democracia. Glauber podia facilmente fazer deste um filme cuja mera referência fílmica virasse um thriller com referências noir dos anos 1940 ou 1950, mas ele transforma o que era pra ser um suposto noir, em uma fábula realista repleta de metáforas, diálogos longos e uma edição que não seguia regras cinematográficas impostas pelo cinema comercial. 

Glauber por sua vez, gostava de utilizar diálogos longos com palavras eruditas como uma forma de estabelecer um paralelo entre o filme e o telespectador. Por um lado, temos a consciência daquilo ser uma experiência fílmica, mas pelo outro, através da linguagem revolucionária com movimentações abruptamente randômicas de câmera (o que davam uma sensação de metalinguagem), tínhamos um espectro de ousadia cinematográfica onde haviam repetições de cenas já passadas, trilha sonoras focalizadas na própria ambientação e por fim, a maneira volumosa de trabalhar com personagens vivendo situações caóticas onde o caos decerto impera. Isso tudo faz-nos lembrar que estamos vendo uma película, o que faz a experiência de assistir qualquer um de seus filmes, ser a experiência similar de assistir películas de caras como Pasolini ou de Ousmane Sembene, onde os personagens não participam da famigerada jornada do herói e não são nem mocinhos ou vilões, mas vítimas de uma complexidade humana, complexidade que essa favorece o espectro de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” onde temos vários volumes de personagens complexos e o filme por si só não estabelece necessariamente um heroísmo dos personagens principais, mas humaniza os personagens através das vivências obtidas por estes em suas ambientações.

Em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” temos Antônio das Mortes, um matador de aluguel que é contratado para assassinar o suposto último cangaceiro vivo de uma pacata cidade sertaneja. Logo ao perceber as injustiças do povo, ele busca sua redenção tanto pessoalmente quanto religiosamente se rebelando contra as próprias autoridades que o contrataram e buscando justiça contras as injustiças que cada vida passou ali.

Antônio das Mortes não chega ser nem de perto, o arquétipo heroico dessa estória, já que como a própria canção-tema do filme diz que o próprio Antônio das Mortes não tem permissão para entrar em uma igreja sendo jurado em mais de dez igrejas e não tem nenhum santo que o protege, trazendo para a própria persona de Antônio, um sentimento ambíguo de desprezo por si próprio e por uma complexidade ampla sobre seu personagem.

Por um lado, nós membros da audiência interpretamos Antônio como um ser malevolente nos momentos primevos da película, mas ao longo do filme temos a ciência de que suas ações são movidas por um espécime de desprezo que Antônio tem por si próprio. Uma cena onde ilustra bem a complexidade desse personagem, é logo no início onde Antônio revela em uma conversa, que foi convidado por Lampião para integrar o grupo de cangaceiros, e mesmo sentindo um desejo endógeno de se tornar um desses, acaba se mantendo como matador de aluguel sendo condecorado por coronéis regionais que não aceitam direitos trabalhistas e melhorias para os povos limítrofes que coabitam as regiões onde eles imperam. Apesar de curta, essa cena humaniza Antônio e o coloca não como vítima de suas ações, mas vítima da naturalização da violência local, onde ao perceber que a violência é comum naquele ambiente, a oportunidade monetária de erradicar justiceiros sociais poderia tornar-se lucrativa.

Tida como uma continuação de “Deus e o diabo na terra do sol” (do mesmo diretor lançado em 1964), “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” utiliza o antagonista do filme predecessor (o próprio Antônio das mortes) como a figura a ser protagonizada. “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” é um tipo de filme que requer atenção nos mínimos detalhes, desde diálogos até sequências com ampla duração. Isso demonstra a natural habilidade de Glauber Rocha em prender sua audiência em eventualidades que ocorrem gradualmente nos seus filmes. 

Esteticamente, temos elementos que fazem desta experiência fílmica algo a ser ponderado, a começar por seu roteiro que traz tantos elementos culturais que tangem a influência afro-brasileira no catolicismo através das personificações de santos populares brasileiros vividos por Santa Bárbara (Rosa Maria Penna) e Ogum (Mário Gusmão), dois personagens extremamente significativos para a obra já que servem como mentores espirituais dos habitantes da pacata cidade onde o filme se passa. Tanto Santa Bárbara quanto Ogum (ou Antão como se chama no filme) estão sempre próximos ao cangaceiro Coirana, um cangaceiro local que desafia autoridades buscando justiça social e igualdade aos sertanejos. 

Uma cena onde isso é exemplificado é uma cena onde podemos ver Coirana entre Ogum e Santa Bárbara durante um comício popular onde Coirana busca defender o vilarejo ao mesmo tempo que refere-se à Lampião como sua maior referência. Logo nessa cena ao ver estes dois entre um homem tomado pela violência local, passamos a ressignificar a presença destes como se fossem um escudo protetor do vilarejo, como se o próprio Coirana fosse um arauto da justiça e eles seus mentores que são tratados como figuras espirituais protetoras. 

A espiritualidade aliás, é um forte sujeito na película, já que vemos como a religião torna-se um subterfúgio emocional dos habitantes da cidade onde o filme se passa, ao mesmo tempo que coabitamos com figuras místicas como Ogum e Santa Bárbara, demonstrando como que religiosa e mística a ambientação da estória é.

É neste cenário onde somos testemunhas de duelos sangrentos onde muito sangue é derramado. De um lado temos os habitantes cujo o líder é Coirana, que promete justiça e proteção ao povo tendo consigo a proteção de Santa Bárbara e Ogum simultaneamente, do outro, temos Coronel Horácio (interpretado por Jofre Soares), que teme a chegada do povo ao poder e por isso passa as responsabilidades ao seu mandante Mattos (Hugo Carvana) que resolve contratar Antônio das Mortes para derrotar Coirana e passar a ter o controle fixo da cidade para si mesmo. Logo no começo da película, Coirana se refere durante um comício popular ao Dragão da Maldade como um ser orgulhoso e ao mesmo tempo rico, logo, passamos a interpretar Antônio das Mortes como o dragão da maldade ou o vilão do filme, mas é a partir desta premissa que temos uma inversão poderosa no roteiro de Glauber Rocha onde vemos Antônio das Mortes duelando em um duelo de espadas contra Coirana onde Antônio sai como vencedor. Após vencer o cangaceiro, percebemos que Antônio das Mortes torna-se subjetivo para as atividades imperialistas que ocorrem na região sertaneja, onde o colonialismo cultural volta a imperar e o povo torna-se aquém das atividades dos coronéis. Logo vemos que não é Antônio o dragão da maldade, mas sim os fazendeiros ricos da região que são os seres reais a serem desafiados e eventualmente batidos. 

Logo após a vitória contra Coirana, Antônio das Mortes passa a ser perseguido por fantasmas do passado. Primeiro temos uma demonstração de fraqueza humana sua, onde temos o personagem tendo um contato direto com Santa Bárbara onde ela o informa para se afastar da cidade o quanto antes como se fosse um aviso prévio, em seguida, o Coronel Horácio contrata jagunços para assassinar seus opositores em uma sequência reminiscente da Guerra de Canudos, onde quase todos os habitantes participam de um hecatombe regional. É neste momento onde passamos a enxergar a natureza humana de Antônio e por fim sua redenção.

A redenção de Antônio não significa o perdão por suas ações, mas uma tentativa sua de mudar estigmas sobre sua pessoa. Para entender melhor seus estigmas, é preciso voltar no filme predecessor de “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”: “Deus e o Diabo na terra do sol”, onde Antônio não é tão explorado como sua sequel, mas temos aqui Antônio como um matador de cangaceiros contratado tanto pela igreja quanto por fazendeiros para assassinar pessoas que são tidas como subversivas às relações de poder e seus proponentes. Aqui sabemos muito pouco sobre seu passado e sobre suas motivações, só sabemos que suas ações são todas demonstradas por um sentimento de desprezo próprio por si mesmo e uma espécime de obsessão à procura de cangaceiros como um parâmetro pessoal. Aqui Antônio não é tão explorado como no próximo filme, mas aqui vemos ele favorecendo o lado mais poderoso: o lado hierárquico dos poderosos na região simplesmente por desejo próprio. 

No fim de “Deus e o diabo na terra do sol” vemos ele assassinando o cangaceiro Corisco (Othon Bastos) mas antes de morrer Corisco exclama: ”Mais forte são os poderes do povo”, algo que tem um impacto profundo na continuação da obra em “O dragão da maldade contra o santo guerreiro”, onde a vida de Antônio e sua trajetória como matador de aluguel é mais explorada. Em “O dragão da maldade”, Antônio das Mortes passa a ter um sentimento de culpa ao notar que suas ações influenciaram na chegada dos coronéis ao poder, e a partir deste pretexto vemos Antônio se unindo com as forças oprimidas da cidade, uma união que outrora ele não faria, mas em busca de sua redenção pessoal, ele passa a se unir com o Professor da cidade (Othon Bastos) para combater os jagunços contratados pelas forças mais poderosas da cidade para erradicar de vez qualquer espécime de justiça social que pondera imperar por lá e é desta forma que chegamos ao clímax do filme, onde Antônio das Mortes junto do Professor lutam contra os jagunços contratados pelo Coronel e seus vassalos na praça da cidade. Por um lado, tal cena é reminiscente de faroestes norte-americanos clássicos ao mesmo molde que Glauber intercala pitadas de uma montagem neo-realista não sequencial onde personagens são colocados em cena e em seguida temos um plano que não havia sido estabelecido preteritamente. Isso implica e demonstra a facilidade de Glauber em contar estórias nunca antes contadas em um jeito próprio recheado de referências vanguardistas.

O duelo por fim tem seu clímax com Ogum encima de um cavalos carregando consigo uma lança (reminiscente do conto católico de São Jorge derrotando o dragão) e eventualmente lançando ela contra o Coronel da cidade e derrotando de vez o dragão da maldade. Aqui Glauber nos mostra sua versatilidade cinematográfica em subverter nossas expectativas enquanto audiência.

”O dragão da maldade contra o santo guerreiro” não é um filme sobre vilões e heróis, mas um filme sobre redenção de quem realmente achávamos que eram os seres humanos de natureza torpe mas o filme prova que a violência estatal influencia agentes de justiça social a buscarem soluções de problemas que tangem melhorias sociais à sua própria maneira.

O filme tem uma conclusão bastante interessante. Após derrotar junto de Ogum e Santa Bárbara as artimanhas do coronel da cidade, Antônio das Mortes caminha lentamente ante a caminhões na estrada sozinho onde o filme se encerra. Curioso é que o filme originalmente se passa no governo Vargas por volta dos anos 1940 e aqui temos caminhões dos anos 1960 e um logo do posto Shell típico dos anos 1960 na beira da estrada. Isso influencia uma espécime de anacronismo em homéricas ocasiões do filme. 

Quiçá na escolha das canções onde temos tanto canções regionais quanto de canções populares dos anos 1960 na trilha sonora do filme, temos uma influência muito grande de um anacronismo que é utilizado propositalmente pelo Glauber numa tentativa de nos dar uma sensação fílmica de mesmo com todas as sensações sentidas naquele cenário, aquilo não passa de uma fábula neo-realista com influências do cinema italiano e com uma breve pitada de westerns norte-americanos. A utilização de elementos modernos neste filme simboliza quiçá o desejo de Glauber de fortalecer sua visão sobre o quão revolucionário o cinema novo foi e como ele é ainda muito influenciado por gerações seguintes.

A utilização de elementos culturais anacrônicos é  muito usual quando o cineasta busca trazer uma visão sua sobre sua época. Dois exemplos disso são dois filmes do Quentin Tarantino: Django Livre e Bastardos Inglórios. Aqui ele utiliza canções modernas em dois filmes que passam em épocas longínquas em termos do passado e ele faz isso justamente para reforçar pra audiência que por mais realista que aquela ideia seja, é uma estória com moldes da realidade. Logo, assim como Tarantino, Glauber expressa seu desejo endógeno de se aprofundar mais no desejo de revolucionar o sentido que estórias são contadas e portanto trazer à sua maneira, filmes a serem estudados e revisitados.

“O dragão da maldade contra o santo guerreiro” mesmo sendo uma continuação de “Deus e o diabo na terra do sol”, não implica na necessidade de assistir o primeiro para entender a estória a ser contada. Aqui vemos claramente as influências do cinema de Pasolini e de Antonioni no quesito técnico do filme, tanto na estética colorida (liderada pelo grande Affonso beato) quanto no roteiro que emprega reviravoltas, redenção e anacronismo. “O dragão da maldade contra o santo guerreio” é um tipo de filme que muda o sentido que assistimos o cinema nacional, ele é uma fábula original e repleta de sensações que mudam o rumo conformista que temos sobre problemas sociais e passa nos empregar reflexões de como problemas do nosso dia-a-dia também são de nossa responsabilidade, portanto, vemos o mundo ao nosso redor com outros olhos, olhos que são subvertentes ao tempo e assim anacrônicos ao mesmo tempo que sentimos que nossas ações devem ser avaliadas o tempo todo, advogando sempre para enfim se ter uma redenção introspectiva nossa. Em outras palavras, que filmaço meus amigos.

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