
‘Amores Materialistas’: o anti-romance romântico de Celine Song
Diretora de “Vidas Passadas” retorna com um retrato inquietante sobre relações performáticas, escolhas disfarçadas e a ilusão da liberdade afetiva
Por Lilianna Bernartt
As relações humanas são fundamentadas na troca. É assim que a banda toca desde os primórdios da humanidade. A partir – literalmente – dessa constatação, a cineasta Celine Song se propõe a discutir algo ambicioso: um espelho multifacetado das relações contemporâneas, em que amor, dinheiro e desejo colidem em um mercado de afetos.
Se em “Vidas Passadas”, seu longa anterior, o amor era uma ferida aberta no tempo, aqui ele é moeda. Uma transação. Não porque seja frio ou cínico por natureza, mas porque, desde sempre, foi estruturado sobre trocas de poder, prestígio, ascendência. Se antes eram cabras, dotes, hoje são compatibilidades educacionais, financeiras, afetivas — e um acúmulo de frustrações e expectativas mal resolvidas.
Lucy (Dakota Johnson) é uma talentosa casamenteira, daquelas com um faro raro para matches. Ela não apenas junta casais: ela otimiza conexões. Seus encontros são planilhas emocionais — critérios, filtros, (in)compatibilidades. O amor formatado em uma planilha de Excel.
A diretora Celine Song já relatou publicamente que trabalhou como casamenteira profissional e que sua experiência nesse mundo serviu de inspiração para o filme. A partir disso, ela traz para as telas um olhar clínico de quem sabe que os bastidores do amor são, muitas vezes, anti-românticos.
“Amores Materialistas” lança um olhar cortante sobre os afetos contemporâneos, mostrando como relações performadas transformaram o amor em um grande negócio, em que tudo está à venda: corpo, estilo de vida, carisma e até mesmo vulnerabilidade.
Song articula esse universo não como sátira, mas como constatação. E é aí que reside a força do filme. As relações que ela filma são, intrinsecamente, disputas de poder, já que, desde que o homem é homem, o amor nunca foi neutro. O filme mostra como mesmo o flerte mais sutil está atravessado por dinâmicas de poder.
Nesse sentido, “Amores Materialistas” dialoga com Jane Austen no que diz respeito à construção de um feminino que reconhece as problemáticas de seu entorno — mas com o filtro da modernidade: da autonomia, da liberdade de escolha. Ou, pelo menos, esse seria um primeiro olhar acerca da proposta. A cereja do filme, na verdade, é a subversão que Celine faz dos ditos “avanços modernos sociológicos” para escancarar uma engrenagem historicamente cíclica acerca das relações humanas.
Lucy surge como uma protagonista consciente, racional, que se vê balançada pelas possibilidades entre passado e presente. De um lado, Harry (Pedro Pascal), que representa o homem rico e desejado: satisfaz quase todos os checklists da protagonista, sendo até mesmo chamado de “unicórnio”, diante da improvável materialização de um ideal masculino. Do outro lado, John (Chris Evans), desempregado, ator de teatro, que ainda está lutando para se firmar.
Lucy está no meio de dois caminhos: um que oferece conforto, status e previsibilidade; outro que traz paixão, lembranças e incerteza. Ou seja, nenhum dos dois é simples, perfeito ou suficiente.
A partir da busca pelo match de suas clientes, a protagonista questiona suas próprias “escolhas” e se vê diante de dinâmicas sociais primitivas disfarçadas de avanços.
Neste retrato em que o amor se apresenta como uma transação mascarada por afetos, o que salta com clareza é o desequilíbrio estrutural e a insalubridade desse “mercado” em que operam as relações heterossexuais: enquanto os homens seguem tendo o privilégio da escolha e da imaturidade, as mulheres lidam com a responsabilidade emocional e com o risco constante.
Para eles, errar, sumir, hesitar, bancar a fragilidade emocional ou simplesmente exigir, sem oferecer o equivalente, são comportamentos tolerados — até romantizados. Para elas, cada passo em falso pode significar desgaste, perda ou violência. A mulher está constantemente em estado de cálculo e alerta, forçada a pesar segurança, afeto e risco.
O filme evidencia a precariedade afetiva imposta às mulheres sob o disfarce da liberdade de escolha.
E Lucy, ainda que consciente, meticulosa e observadora, não se abstrai deste sistema de jogo de afetos e transita entre dois modelos de masculinidade — um financeiramente estável e emocionalmente opaco; o outro sensível, porém estruturalmente impotente — sendo que nenhum deles oferece um real abrigo. De forma sutil, Celine Song coloca em xeque o mito do amor romântico como campo neutro, quando, na verdade, ele é um terreno profundamente desigual e assimétrico.
Assimetria, aliás, é uma palavra que rege tanto o campo das ideias quanto das escolhas estéticas da diretora quanto à mise-en-scène, que se traduz por uma fotografia sóbria, estável no que diz respeito a Harry; e trêmula, ágil e imprevisível no que diz respeito a John, reverberando o universo de possibilidades de ambos.
Há ainda o universo independente da personagem, que oscila entre enquadramentos distanciados, estáticos, e a aproximação de uma câmera que literalmente se insere na dinâmica da protagonista — momentos em que conseguimos acesso à sua fragilidade em meio às muitas máscaras sociais de que ela se utiliza.
Dakota Johnson transita de forma honesta dentro dessa complexidade e traz uma contenção que se aproxima mais de seu registro pessoal de atuação do que de uma construção de texturas dramáticas — não comprometendo, entretanto, a fluidez e a dinâmica propostas. Pedro Pascal e Chris Evans entram no jogo com disposição vigorosa para brincar com os estereótipos masculinos propostos.
Por fim, temos um filme que evolui, que não se contenta com a mesmice, que se contradiz, que recusa os clichês de um filme romântico, mas que não abandona sua estrutura. Que critica o amor, mas incita a esperança nele — alertando que a busca é diária, que a segurança, a previsibilidade, o controle… são ilusórios quando se trata do outro.
“Amores Materialistas” não pretende oferecer respostas, mas desorganizar certezas. Celine Song nos entrega um filme que caminha na corda bamba entre o desencanto e a ternura, entre a rigidez dos sistemas sociais e o impulso incontrolável de amar.
O longa escancara os paradoxos do amor contemporâneo para lembrar que, por trás de todo cálculo emocional, ainda pulsa o desejo desobediente de conexão. E talvez seja nesse paradoxo — entre estrutura e caos, entre razão e afeto — que resida o verdadeiro gesto romântico do filme: insistir na complexidade de amar, sem anestesia, sem garantias.
E assim, Celine Song faz um anti-romance mais romântico que muito filme água com açúcar por aí.