Por Israel Costa

A região amazônica compõe cerca de 61% do território brasileiro, e corresponde aos estados Acre, Amapá, Amazonas, Mato Grosso, Pará, Rondônia, Roraima e Tocantins e boa parte do estado do Maranhão. Segundo o último censo de 2020, a população dessa região é de 28,1 milhões de habitantes e representa 13% da população brasileira. A região também é bastante conhecida por seus festivais culturais como Bumba Meu Boi no Maranhão e o Boi Bumbá no Amazonas, por danças típicas como o Carimbó no Pará, além de ser reconhecida também por sua culinária e suas lendas. Em meio a todo esse multiculturalismo, infelizmente a região enfrenta diversos problemas crônicos, que vão desde problemas estruturais até problemas socioeconômicos. 

Mas em meio a tudo isso, uma nova geração de produtores audiovisuais driblam qualquer tipo de dificuldade e criam obras lindíssimas, que são reconhecidas dentro e fora do país. Algumas dessas produções ganharam destaque no maior festival de cinema brasileiro, o 52º Festival de Gramado, entre elas os curtas premiados ‘Ela Mora Logo Ali’, de Rondônia; ‘O Barco e o Rio’  e ‘Castanho’, do Amazonas; e ‘Casa de Bonecas’, do Maranhão; além dos longas aclamados ‘Noites Alienígenas’, do Amazonas; e ‘Mestras’, do Pará. O talento e a criatividade desses cineastas regionais têm surpreendido e encantado o público e a crítica, contribuindo para a valorização da produção audiovisual da região.

Mas alguns desafios ainda precisam ser travados, é o que relata o diretor de ‘O Barco e o Rio’, Bernardo Ale Abinader, ganhador do prêmio de melhor filme de 2020 no Festival: “São muitos os desafios, a dificuldade em conseguir equipamento de qualidade é um problema de fato. Aqui existe o que chamamos de “custo amazônico”, pois tudo é mais caro, seja pela distância do resto do país, o que torna o acesso a certos equipamentos mais difícil, seja pela logística, e até mesmo pelo clima, que pode danificar alguns equipamentos com mais facilidade. Contudo, o maior problema é mesmo a falta de investimentos. Por muitos anos tivemos quase nenhum edital de fomento, e os poucos que haviam era com pouquíssima grana, e além disso há pouco investimento em formação. Até hoje não existe curso superior de cinema ou audiovisual regular aqui no Amazonas, e como estamos muito isolados do resto do país, sair daqui é bem mais difícil. Para fazer pós de imagem e som ainda precisamos sair do estado.”

É o que relata também Fabiano Barros, diretor de ‘Ela Mora Logo Ali’ o primeiro curta-metragem de Rondônia a concorrer no Festival de Cinema de Gramado e ganhar três Kikitos de Ouro durante a cerimônia: “Quando a gente pensou em fazer o ‘Ela Mora Logo Ali’, nós não tínhamos como buscar incentivo em lugar nenhum. A região norte tem um histórico sobre cinema, sobre a produção audiovisual por vários fatores, por conta da questão da capacitação, da falta de incentivo, tanto pública quanto privada, falta de profissionais, equipamentos, tudo isso. O filme aconteceu graças à Lei Aldir Blanc. A primeira dificuldade que a gente enfrentou foi essa, porque, na verdade, a gente estava numa concorrência em um projeto que a gente sentia que era muito importante para a sociedade como um todo, e fomos os últimos colocados do edital. E, na hora da produção, as maiores dificuldades que a gente enfrentou era a questão mesmo do valor que nós tínhamos para investir, era muito pouco, a equipe era muito grande, porque o curta pedia isso na sua montagem.”

Cena de “Ela Mora Logo Ali”. Foto: Divulgação

Karla Martins, produtora de ‘Noites Alienígenas’, contou um pouco de suas dificuldades na produção do longa: “O primeiro era a necessidade de compor uma equipe o mais acreana ou pelo menos amazônica, fazer um filme o mais acreano possível, com condições de ocupar, principalmente tecnicamente, as grandes salas de cinema. Uma produção que refletisse nossa Amazônia acreana, contando algo local, mas que contava algo que refletia no território amazônico como um todo. Acho que esse desafio era o maior de todos!”

Conversamos também com George Pedrosa, diretor de ‘Casa de Bonecas’, um Thriller brasileiro LGBTQIAPN+, que também fala dos desafios enfrentados: “Eu acho que a maior dificuldade foi sempre o estigma de produzir cinema de terror, cinema LGBT aqui no Brasil. O ‘Casa ​​de Bonecas’ era um projeto antigo, que a gente estava tentando tirar do papel desde ​​antes da pandemia, mas foi graças aos editais, à Lei Aldir Blanc, que a gente conseguiu ter o projeto aprovado, e conseguiu fazer o filme com dinheiro. Também foi a primeira vez que a gente da Kasarão Filmes e o pessoal que trabalha comigo, trabalhamos com orçamento. Mas enfim, é um problema que eu também enfrento nos meus projetos futuros. É fazer as pessoas entenderem que esses gêneros, eles podem ser levados a sério e também podem.”

O ator, diretor e roteirista Adanilo Reis, famoso por ‘Noites Alienígenas’ e concorrendo este ano com os filmes ‘Castanho’ e ‘Oeste Outra Vez’, compartilhou alguns dos desafios de trabalhar como produtor audiovisual na região norte: “Então, a gente fez o Castanho em 2021, ganhamos um edital, né, da Lei Aldir Blanc, na época, e a gente teve aquelas dificuldades das produções ali pós-pandemia, na verdade ainda tava tendo pandemia, né, inclusive em 2021, no início do ano foi o ápice da falta de oxigênio em Manaus, por exemplo, mas a gente fez no final do ano de 2021, tivemos esses empecilhos aí das produções que aconteceram nesse período. E depois o dinheiro que ganhamos no edital acabou não sendo suficiente. Nós tivemos que custear do nosso bolso. Eu, o Italo Almeida, que é da produção, o Victor Caleb, que co-dirigiu comigo e a Sofia Sarrachiano, que é uma das atrizes.”

A persistência e determinação dos envolvidos nos projetos são essenciais para superar os desafios que surgem pelo caminho, e é gratificante ver o reconhecimento dessas obras se destacando no cenário do Festival de Gramado. É o que Fabiano Barros relata após sua obra ser reconhecida no festival: “Quando a gente fez o ‘Ela mora logo ali’, a gente não pensou. Inicialmente, a gente não pensava muito nessa questão dos festivais. A gente, na verdade, queria contar a história. Era a nossa primeira ficção, então a gente estava muito empolgado. E foi quando o Rafael Roganti, o outro diretor e roteirista, escoou o filme para os festivais e o filme começou a tomar uma proporção muito bacana até chegar em Gramado. E quando nós passamos em Gramado, só o fato de estar nessa programação, que a gente sabe que várias pessoas do mundo e do Brasil assistem, pessoas do cinema, o público em geral, foi um presente muito grande para a produção da região norte. A gente tem agora um pouco a questão do ‘Noites Alienígenas’, que foi antes da gente também, que foi um filme premiado, e logo em seguida vem o ‘Ela Mora Logo Ali’, então a gente ficou super feliz, sabe, da importância que é participar de um festival dessa magnitude. Trouxe vários olhares para a obra em específica do ‘Ela Mora Logo Ali’ e também o interesse de muita gente que faz cinema, que escreve sobre cinema, que compra, vende, distribuidoras, streamings, e começou a ter um olhar diferenciado para a região norte. ​​E o filme foi tomando uma proporção muito grande, também graças a toda a trajetória dele, principalmente o [Festival] de Gramado, que fez com que mais pessoas assistissem. Fomos convidados para vários outros festivais, mostras…”

Mesmo com tantas honrarias, Adanilo Reis falou um pouco da importância não só do festival de Gramado quanto dos outros espalhados pelo Brasil: “Então, é como se a gente pudesse alcançar o objetivo com aquele trabalho. O Castanho, quando eu fiz, um dos meus objetivos principais, se não o principal, era que ele passasse no Festival de Gramado. Então eu vejo essa realização profissional aí acontecendo com esse filme. Eu já tinha estado em Gramado em 2022, com ‘Noites Alienígenas’. Saímos de lá premiados, eu com uma menção honrosa. Poder voltar ao festival com o Castanho é uma honra tremenda, né? E eu não estarei só com o ‘Castanho’, no próprio dia 12 vai ter ‘Oeste Outra Vez’, que é o filme que eu atuei, do Érico Rassi, que vai estrear nacionalmente em Gramado. Então no dia 12 vai ter uma sessão dupla de Adanilo aí, o que me deixa bem feliz, empolgado. E outra coisa é que o ‘Castanho’ estreou ano passado, né, no Festival de Cinema da Amazônia Olhar do Norte. E depois, logo na sequência, na mesma semana, ele passou no Kino Forum, que é o maior festival de curta da América Latina, o festival gigante que acontece em São Paulo e, logo na sequência, ele passou no Festival do Rio, meses depois e esse ano esteve presente no Festival Guarnicê que é no Maranhão. Então ele já fez um circuito bacana de festivais e eu fico muito contente com tudo isso, e agora indo pra Gramado é alegria total.”

Quando ‘Noites Alienígenas’ ganhou sua indicação também foi uma surpresa, e Karla Martins falou sobre a importância dessa indicação: “Foi muito importante e relevante para toda a Amazônia, porque de fato há muita dificuldade em produzir e uma falta de oportunidade. O reconhecimento do filme prova que descentralizar recursos tem grandes resultados, fortalece o Mercado Audiovisual como um todo, revela uma narrativa brasileira que está em forte construção e é brasileiríssimo! O prêmio criou expectativas pelo filme. Claro que isso ajudou no lançamento porque as pessoas se sentiram curiosas e até descrentes, ‘como um filme que veio do Acre, ganhou Gramado?’ Então, sem dúvida, o festival alavancou o filme!”

“Noites Alienígenas” premiado em Gramado 2022. Foto: Edison Vara/Agência Pressphoto

Jacksciene Guedes, diretora de arte de ‘Casa de Bonecas’, filme que levou para casa um Kikito de Melhor Direção de Arte, também relatou o quão gratificante foi receber esse reconhecimento: “Olha, foi loucura, no primeiro momento eu realmente achei que era brincadeira. Eu já tava feliz só da gente estar exibindo no festival, eu já tava achando ótimo. E ser eu e meu amigo Felipe Spooka a ganhar o prêmio, a gente sendo do Maranhão, fazendo terror LGBT, com um orçamento minúsculo, foi incrível. Até hoje eu preciso ficar me lembrando que eu ganhei mesmo. E isso foi muito relevante profissionalmente pelo menos pra mim, não só por mostrar que eu tenho capacidade, mas também porque, sendo mulher num set, pode ser muito difícil, e eu percebi que, depois de Gramado, eu até tive mais voz dentro do trabalho.”

Bernardo Ale Abinader, também falou um pouco sobre esse reconhecimento: “O festival de Gramado mudou a minha vida! Eu estava pensando em desistir do cinema antes do festival, pois tudo era tão difícil e caro, eu tinha a impressão que ninguém se importava com as nossas produções. O esforço enorme que fazíamos parecia não fazer muito sentido, não era recompensado, até vir o inesperado reconhecimento de Gramado. Conseguir exibir um filme do Amazonas lá já era pra gente uma grande conquista (desde os anos 1990 nenhum filme do Amazonas até então tinha sido exibido lá), mas conseguir ganhar 5 Kikitos foi algo que estava muito além de qualquer previsão nossa. E depois de Gramado, que foi onde o filme estreou, conseguimos entrar em dezenas de outros festivais, inclusive de fora do Brasil. Essa experiência foi um divisor de águas mesmo, abriu muitas portas para mim e para a equipe. Uma pena que nessa época todos os festivais foram online por conta da pandemia, mas mesmo assim conheci muitas pessoas, inclusive algumas que estão comigo até hoje na luta para fazer o longa-metragem baseado no curta.”

A importância do Festival de Gramado transcende suas fronteiras geográficas e se reflete em todos os festivais de cinema do Brasil, que contribuem para a disseminação e valorização da cultura audiovisual no país. Além de ser uma vitrine essencial para o cinema nacional e latino-americano, o festival desempenha um papel crucial na formação de novos públicos e na promoção de debates sobre temas relevantes para a sociedade. Seu prestígio e longevidade inspiram outros festivais a buscarem excelência e inovação, fortalecendo a rede de eventos cinematográficos no Brasil, promovendo a diversidade cultural e ampliando as produções audiovisuais pelo país. Por meio de sua influência, o Festival de Gramado ajuda a consolidar o cinema como uma forma de expressão artística vital, incentivando a produção de obras que dialogam com a realidade brasileira e projetando a cultura do país no cenário internacional.