Rafaela Collins, da Cobertura Colaborativa NINJA na COP30

O barulho das motosserras chega antes da devastação. No território Amanayé, em Goianésia do Pará, o som metálico corta o silêncio da mata e anuncia que mais uma árvore vai ao chão, devastando a mata e a existência de um povo. Ali, onde os Amanayé vivem há séculos, a floresta segue sendo destruída enquanto o Estado brasileiro falha repetidamente em garantir um direito básico: a demarcação do território.

Segundo o relatório mais recente do Sistema de Monitoramento da Exploração Madeireira (Simex), quase metade da madeira retirada no Pará entre 2023 e 2024 é ilegal. Dos 43.052 hectares explorados, mais de 20 mil não tinham autorização para manejo, o equivalente à destruição de 56 campos de futebol de floresta por dia. O cenário é devastador por si só, mas torna-se ainda mais dramático nos limites da Reserva Indígena Amanayé, que registrou 2.026 hectares destruídos em apenas um ano, o que significa um aumento de 152% em relação ao período anterior.

O território que existe, mas não é reconhecido:

Criada oficialmente em 1945, a Reserva Amanayé nunca foi homologada. O vácuo jurídico abriu caminho para um ciclo contínuo de invasões, grilagem e expansão de atividades ilegais. Hoje, o território está sufocado pela expansão da soja, pela exploração madeireira e por grupos criminosos que se aproveitam da ausência do Estado. Goianésia do Pará, epicentro da destruição, teve aumento de 124% na retirada irregular de madeira, uma pressão direta sobre a vida da comunidade.

“Nosso povo fica à mercê do processo de demarcação enquanto os fazendeiros ampliam seus campos e a extração ilegal continua muito forte”, denuncia Ronaldo Amanayé, liderança do povo e diretor executivo da Fepipa.

Ronaldo Amanayé aguarda demarcação de território (Foto de Rafaela Collins)

A extração ilegal dentro de áreas oficialmente protegidas cresceu 165% no Pará, e a maior parte dessa devastação, o que equivale a 88%, está concentrada justamente dentro da Reserva Amanayé. A Reserva se tornou o principal foco de desmatamento irregular entre todas as unidades analisadas, seguida apenas pela Floresta Nacional de Caxiuanã. Para a pesquisadora do Imazon, Camila Damasceno, o cenário exige resposta imediata: “a ilegalidade destrói a floresta e rompe o equilíbrio ambiental. Povos e comunidades tradicionais são os primeiros e mais profundamente atingidos.”

80 anos de omissões e violações:

Em outubro, a Federação dos povos Indígenas do Pará (Fepipa) enviou um ofícios à Presidência da República, Ministério dos Povos Indígenas, Ministério da Justiça e Fundação Nacional dos povos indígenas (Funai), cobrando a efetivação da Reserva Amanayé e a desintrusão da Terra Indígena Sarauá, reconhecida oficialmente como terra indígena em 2011, mas ainda ocupada ilegalmente. O documento relembra que decisões judiciais já reconheceram a área como da União, devendo ser registrada oficialmente em favor do povo Amanayé. Nada foi cumprido.

“O que pedimos é o direito de existir, permanecer e manifestar nossa cultura. É um pedido de humanidade, não de conflito”, afirma a carta assinada por Ronaldo Amanayé e Concita Guaxipiguara Sompré.

A falta de regularização fundiária impede o funcionamento adequado da educação escolar indígena. Crianças estudam sem transporte regular, sem professores bilíngues e sem infraestrutura mínima, descumprindo a Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e a Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho). A insegurança territorial também facilita a entrada de facções, grileiros e madeireiros, criando um ambiente de violência que atinge diretamente jovens e anciãos e interrompe práticas culturais centrais para a identidade Amanayé.

O caso se repete com os Sarauá, retirados compulsoriamente de suas terras tradicionais. São décadas de omissão estatal costurando um mesmo padrão de abandono.

A voz do território: Romário Amanayé

Romário alerta sobre danos irreparáveis (Foto: Rafaela Collins)

A reportagem ouviu Romário Amanayé, liderança indígena, que resume a dor e a resistência de seu povo: “Eu nasci e cresci aqui. Tudo que sou está ligado a essa terra que ainda não foi reconhecida oficialmente”. Sobre as ameaças constantes ele afirma que “o barulho das máquinas apavora” e que já pensaram em sair, exitam por amor à terra: “se deixarmos o território, eles destroem tudo mais rápido”.

Com a destruição da fauna e flora, o sentimento de perda também é causado pelas vidas humanas que se foram. “Perdemos parentes pela violência direta e pela violência silenciosa, doenças, contaminação, o medo que adoece a alma”. O modo de vida destas comunidades está totalmente ligado ao manejo da terra e sem ela a existência é ameaçada. “A floresta é alimento, cura, cultura e espírito. Quando derrubam a floresta, tiram o chão dos nossos pés”.

A esperança dos originários veio com a notícia da realização 30ª conferência das partes em Belém, eles esperam ser ouvidos com mais atenção durante a COP 30.

“Queremos que o governo cumpra o que já está decidido. Queremos paz para viver em nossa terra e ver a floresta em pé para os nossos filhos”, afirma.

Ele ainda alerta para o impacto das mudanças climáticas: “Já estamos vendo a extinção de espécies da fauna e da flora. Há danos irreparáveis.” Enquanto o mundo discute o clima na porta de entrada para a floresta amazônica,  entre pautas discursos formais os originários buscam por justiça ambiental e preservação, escancarando que a realidade no território Amanayé expõe o maior conflito da agenda brasileira e que não existe clima protegido sem povos protegidos.

A COP 30 ocorre em uma Amazônia brasileira onde a lei é lenta, a ilegalidade é veloz, a floresta cai antes que o direito chegue e onde comunidades resistem sozinhas.

“Cada árvore derrubada é um pedaço da nossa história que desaparece. O futuro é ancestral”, resume Ronaldo Amanayé.

O território Amanayé pede socorro há 80 anos. A pergunta que ecoa na floresta e atravessa as salas da COP é simples e incômoda: até quando o Brasil vai adiar o que já deveria ter sido feito?