‘Algo do Que Fica’ é o filme mais premiado do Festival Internacional de Cinema Ambiental
por Rodrigo Ungarelli, ator entusiasta da dramaturgia e cinema. Algo do que fica, do diretor Benedito Ferreira, foi o filme mais premiado do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – FICA, festival que acontece há 19 anos na na Cidade de Goiás (GO). Conquistou troféus nas duas principais Mostras do Festival. Na Mostra ABD […]
por Rodrigo Ungarelli, ator entusiasta da dramaturgia e cinema.
Algo do que fica, do diretor Benedito Ferreira, foi o filme mais premiado do Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – FICA, festival que acontece há 19 anos na na Cidade de Goiás (GO). Conquistou troféus nas duas principais Mostras do Festival. Na Mostra ABD Cine Goiás levou melhor direção de fotografia, melhor ator e ainda o prêmio Beto Leão de melhor filme de ficção. Já na Mostra Competitiva do Festival o filme foi escolhido como melhor filme goiano, conquistando o troféu João Bennio. Foi premiado na Mostra do Filme Livre, Rio de Janeiro, festival que circulará a produção por diversas cidades garantindo sua exibição pública em mais de 90 sessões até o fim do mês de agosto.
A produção goiana teve sua estreia fora de casa, em janeiro de 2017, e gerou no meio cinematográfico goiano uma grande expectativa pela repercussão que teve. O filme recorda o urgente debate sobre o maior acidente radiológico do mundo que aconteceu em Goiânia em setembro de 1987. Em exibição no estado em que foi produzido, chamou a atenção de uma plateia compenetrada que viu brilhar uma produção sobre o caso tão vivo no imaginário dos goianos e de muitos brasileiros.
O filme se apóia de maneira criativa naquilo que foi gerado a partir da política de esquecimento exercida pelo poder público e pela população, que não queria ser estigmatizada pelo acidente. Sua narrativa desperta dúvidas tão instigantes quanto as respostas que não foram dadas sobre os desdobramentos da tragédia. Nas cenas gravadas no terreno onde a cápsula contendo Césio 137 foi aberta, depois de encontrada nos escombros do antigo Instituto Goiano de Radiologia, vê-se a estrutura que restou de um outdoor que anunciava a construção de um museu a ser entregue no ano de 2010 e até hoje não saiu do papel. A partir de informações desencontradas e que povoam o imaginário do goianiense, o filme estabelece um clima, tendo a melancolia e a ironia como seus principais aliados. Os planos são longos e garantem a fluidez dos diálogos simples e criteriosos, o que nos aproxima a toda memória traumática do acidente. É como se ali, Benedito, que vive e recria o centro da cidade a partir de fotografias do cotidiano, nos dissesse “este é sim um filme goianiense”.
O protagonista é um idoso sem voz e seu silêncio instiga o espectador sobre as causas que o deixaram num estado fora de rotação. Cuidado por avó e neta, a trama não se dedica a explicar a relação das duas mulheres com aquele homem, que vive ao lado do lote mais emblemático da tragédia e que terá sua casa desapropriada para a construção de um museu. A direção de arte dialoga com os destroços da memória e da trágica lembrança, desordenando objetos amontoados nos cantos, mesas, criados-mudos e mobiliário da casa que comporta a narrativa. Esses objetos parecem sinalizar o caos e a desordem que se perpetuaram na vida das vítimas.
Em algum momento pode se duvidar que naquelas cenas haja representação. Uma dúvida que gera no espectador o entendimento de que a câmera estava ali documentando a vida de pessoas reais. O diretor escolheu ou foi escolhido pelos atores? Benedito conta que caminhava pelo centro de Goiânia, onde costuma fotografar os diversos cotidianos, quando conheceu Oldom Bonfim, o senhor septuagenário que protagoniza a história de Algo do que fica. Tal abordagem rendeu o convite para o filme e então meses depois iniciaram as filmagens. Neta e avó que não representam esse papel apenas no filme, mas também na vida real, levam essa intimidade pra cena e flertam entre o campo da realidade na ficção.
Algo do que fica em nós e precisa ser lembrado, acompanhado, fiscalizado. A terrível tragédia do Césio 137, que em setembro deste ano completa 30 anos, não está apenas na memória, nos escombros enterrados, nos caixões vestidos de chumbo. É comum que de tempos em tempos alguém toque nesta ferida para sempre sem cicatrização. Cabe a arte se empenhar nestas questões. Algo do que fica faz isso e nos comove porque permanece em nós seus personagens goianienses, legítimos, irônicos e humanos. O Césio 137 reflete seu brilho na dor, nos corpos, nas almas. Algo do que fica precisa ser visto pelo mundo.