Relativizar as violências que personagens históricos causaram é também perpetuá-las
Relativizar as violências que esses personagens históricos causaram é também perpetuá-las.
O ataque a estátuas é um fenômeno mundial e questiona qual passado deve ser homenageado nos espaços públicos. Os que defendem a estátua de Borba Gato não percebem a violência que esse monumento de pé representa ao povo preto e periférico e aos povos indígenas de todo o Brasil.
Três dias depois da ação contra a estátua, o governo federal emitiu uma propaganda com a imagem de um agricultor portando uma espingarda igual à que Borba Gato porta em Santo Amaro. O que um agricultor do século XXI teria a ver com uma espingarda senão a herança de práticas coloniais e suas relativizações por parte da sociedade?
Relativizar as violências que esses personagens históricos causaram é também perpetuá-las.
Por que motivo Borba Gato mereceria uma homenagem pública de 10 metros de altura? Seria por ele ter feito parte do movimento que alargou as fronteiras do Brasil? O que adianta termos o maior território da América Latina se a atividade de Borba, o garimpo, produz desertos? Não é o garimpo a atividade que mais mata indígenas hoje no Brasil? Que contamina os rios com mercúrio, comprometendo suas águas?
O argumento de que o coletivo Revolução Periférica não sabe quem foi Borba Gato não se sustenta. Um dia antes da ação, o coletivo percorreu as ruas da cidade, colando cartazes nas paredes com as frases: “Você sabe quem foi Borba Gato?” e “Atenção! Poema em Processo”, como um claro prenúncio de uma ação que não desviou a atenção das manifestações contra o governo mas, historicamente, fez parte delas. Não à toa ocorreram na mesma data e ampliaram o debate. Alguma dúvida de que Bolsonaro é um Borba-gatista contemporâneo? Não é ele próprio um produtor de desertos?
O argumento de que a ação abre o precedente para a direita queimar estátuas de heróis da esquerda também não se sustenta. A estátua de Zumbi dos Palmares no RJ é piçhada com suásticas o tempo todo, 300 livros foram banidos da Fundação Palmares recentemente. Queimam nossos filmes em película, apagando a memória dessa nação! Informações científicas e acadêmicas desaparecem! Matam o povo preto e periférico e os povos indígenas todos os dias.
Imagino que a partir de debates como esse, aberto em torno da estátua do bandeirante que assassinou indígenas e pretos, que esses dois grupos possam voltar a se unir na luta por direitos.
A derrubada de Sebastián de Belalcázar na Colômbia, a decapitação de Cristóvão Colombo nos Estados Unidos e a derrubada e submersão de Edward Colston num rio de Bristol, na Inglaterra, são alguns exemplos de uma “tendência iconoclasta, que não trata o passado apenas como o território dos mortos a ser lembrado, mas como participante cotidiano da política dos vivos”, diz o historiador Diogo Quirim.
Vejo pessoas dizerem que ainda assim, mesmo com todos os esclarecimentos, a imagem da ação remete à mesma fumaça preta que está acabando com o bioma mais complexo dessa galáxia.
Sendo assim, vamos lá, respiremos. Convido-os a imaginar uma ação que, sob esse governo, seria impossível, uma utopia. Imaginem que a estátua de Manoel Borba Gato agora, será demovida do local e desmontada. Crianças do bairro, antes iludidas com o enorme boneco armado, são chamadas para ajudar a desmontar essa falsa História. Os ativistas que puseram fogo na estátua são homenageados por terem convidado a sociedade a repensar o passado! Trechos de livros são lidos em voz alta. Os pedaços queimados e desmanchados da estátua agora serão expostos num grande parque da cidade, com o seguinte crédito: “obra iniciada por Júlio Guerra e concluída pelo coletivo Revolução Periférica e as crianças de Santo Amaro”. E quem visitar o parque saberá que não se homenageiam mais garimpeiros, abusadores e escravagistas. As ruas do futuro não os aceitam mais em postos de homenageados. Não reconhecer a legitimidade dessas ações reparatórias pelo mundo afora é também negar o curso da história.