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‘Ainda Estou Aqui’: memória, identidade e a luta contra narrativas imperialistas no cinema
Memória como arma, lembrar como ato político — filme faz parte do resgate da identidade nacional.
Por Duda Araújo
A memória é o território mais ambíguo da natureza humana — por vezes é refúgio, por outras, é assombro. Ailton Krenak, pensador indígena, reflete que a conexão com a memória ancestral é a base fundamental da identidade de um povo. Uma nação desgarrada de suas raízes tende a se perder entre governos autoritários e violentos. É exatamente o cenário que vivenciamos nos últimos anos. Entre o negacionismo e a superficialidade científica e histórica que infecta as entranhas do Brasil, Walter Salles surge com Ainda Estou Aqui, usando a memória como um poderoso mecanismo de resgate da identidade e autoestima nacional, numa narrativa sensível que nos comove e nos desperta.
O cenário político que temos enfrentado nos últimos anos é marcado por tentativas escancaradas de silenciar e reescrever uma história que, para muitas famílias, além dos Paiva, não teve fim. Existe um grande esforço por parte da elite brasileira em relativizar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura e minimizar o sofrimento das vítimas desse período, o que faz parte de uma grande estrutura de desmonte do que sempre representou a população brasileira. É nesse contexto que Salles, ao adaptar o livro de Marcelo Rubens Paiva, dando nomes e rostos às vítimas da ditadura, como aponta Valentina Herszage, atriz que interpreta Vera Paiva, com Ainda Estou Aqui inicia um movimento muito maior na retomada da identidade e da autoestima nacional, principalmente com toda a repercussão do filme mundo afora.
Além do resgate identitário, o longa ainda adentra um espaço surpreendente: o imaginário ocidental. Há séculos, a visão da América Latina sobre ela mesma é moldada pela lógica imperialista, principalmente pela visão norte-americana. Embora Ainda Estou Aqui não seja o primeiro filme sobre uma ditadura latino-americana a ser reconhecido internacionalmente, aparentemente, é o primeiro que causou barulho o suficiente lá fora ao ponto de gerar um questionamento angustiante nos cidadãos de países governados por líderes com mania de soberania, que ameaçam a liberdade de sua nação. Na contramão, o filme desafia esse pensamento, mostrando que a verdadeira soberania habita na valorização de sua história, no reconhecimento de injustiças e, principalmente, na luta para que períodos sombrios não se repitam.
Entre tantas lutas e símbolos, a maneira mais exata que podemos definir Ainda Estou Aqui é como o tipo de filme que reafirma a potência do cinema nacional como uma poderosa forma de resistência e comunicação. É simples, íntimo e urgente. No fim, o grande legado da obra é o ensinamento de que lembrar também é um ato político — e, enquanto houver memória, não haverá repressão que cale um povo que conhece a verdade.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.