Por Igor Galletti

Tente adivinhar que filme é esse: uma família feliz e de ótimas condições financeiras vive em uma grande e bem cuidada casa, onde costuma receber familiares e amigos para encontros descontraídos. O pai é bem-sucedido em seu trabalho, a mãe cuida com esmero do lar, e os filhos têm opções de lazer por perto, além de acesso à educação. Seu país, no entanto, está sob o domínio de um regime autoritário e extremista, cujos tentáculos começam a apertar o bem-estar da família.

Este filme foi um sucesso de crítica, passou em diversas salas de cinema ao redor do mundo e colecionou prêmios, incluindo indicações ao Oscar de Melhor Filme e Melhor Filme Internacional.

Mas não, não é Ainda Estou Aqui (2024).

Trata-se de Zona de Interesse (2023), do diretor Jonathan Glazer, vencedor na categoria Melhor Filme Internacional na edição passada do Oscar, e cujo triunfo serve como bom presságio para uma possível vitória inédita do cinema brasileiro na mais prestigiosa premiação da indústria hollywoodiana.

Antes, porém, de apontar as similaridades entre as duas obras, é importante ressaltar uma diferença: por mais que o enredo seja, em uma primeira análise superficial dos acontecimentos, parecido, seria um sacrilégio histórico, mesmo que relativamente, colocar em patamar de igualdade as trajetórias da família de Eunice e Rubens Paiva, símbolos de resistência ao fascismo, com a família alemã Hoss, símbolo do fascismo.

Baseado no livro homônimo escrito por Martin Amis e publicado em 2014, Zona de Interesse mostra a rotina familiar de um comandante nazista. As ações são simples: os filhos indo para a escola e brincando no belo e florido jardim, momentos de afeto entre a família, o cuidado com o lar, as refeições, os pequenos conflitos amorosos e profissionais, os momentos de lazer.

Zona de Interesse era uma expressão utilizada pelo Terceiro Reich para se referir à área de 40 km² ao redor de Auschwitz. É ali que a casa da família, um dos personagens principais do filme, estava localizada: literalmente ao lado do mais brutal campo de concentração da Segunda Guerra Mundial.

O filme subverte o gênero de guerra ao expor as atrocidades de um dos períodos mais absurdos da História em segundo plano, ilustrado por ações banais de uma família envolvida no conflito. A indiferença face à brutalidade é o que tece o caráter perturbador da obra. Glazer utiliza com maestria diferentes artifícios cinematográficos para reforçar esse contraste, especialmente o áudio. O som atua “como um outro filme”, indica o diretor, que queria que tudo que ocorria no campo de concentração não fosse visto, mas ouvido.

Baseado no livro homônimo escrito por Marcelo Rubens Paiva e publicado em 2015, Ainda Estou Aqui subverte um subgênero do cinema latino-americano: os filmes sobre ditaduras militares. Walter Salles também optou por deixar em segundo plano as atrocidades que foram cometidas no regime, abrindo mão da violência gráfica da tortura e do thriller político dos conflitos armados, e centralizando a narrativa no campo psicológico, com enfoque na trajetória de Eunice Paiva: do que ela sabia como esposa e se permitia falar como mãe.

Ambos os filmes se diferenciam por partir do ponto de vista do não dito, do que acontece nas sombras e se revela, em um ritmo lento e delicado, pela luz solar de uma residência carioca à beira da praia, pela luz fria de uma residência alemã à beira do campo.

O impacto de Zona de Interesse é pela naturalização do horror. O deslocamento da realidade em detrimento da individualidade, da rotina, pelas próprias zonas de interesses de cada um. Se o que acontece do outro lado do muro não lhe afeta, não importa. Revela-se uma metáfora dos efeitos catastróficos da passividade diante do horror, o que ressoa contemporaneamente em uma sociedade que, com tantos meios de conexão, acaba por desenvolver uma facilidade em se desconectar dos problemas que acontecem longe de suas realidades. Urge a necessidade de não se resignar. Aqui, a ação em silêncio é conivência.

O impacto de Ainda Estou Aqui é pelo horror à naturalização. O não descolamento da realidade em detrimento da individualidade. O que acontece do outro lado do muro importa. Não há como fugir do que acontece ao seu redor. O não dito surge como um paradoxo: o campo de atuação é delicado, mas sobretudo forte, pois dialoga com o escudo impenetrável de uma mulher, que filtra as dores da perda, injustiça e medo para que sua família siga em movimento. Aqui, a ação em silêncio é resistência.

As duas histórias também exibem um caráter local, isto é, representam especificidades da história de um país, ao mesmo tempo em que soam universais, o que desenvolve um senso de identificação independente de nacionalidade, cultura e sociopolítica (algo que os demais concorrentes da categoria neste ano não conseguiram atingir). As obras que dialogam entre esses dois espectros tendem a agradar a Academia e a vencer o Oscar de Melhor Filme Internacional.

A especificidade de Ainda Estou Aqui é a abordagem de um período da história do Brasil, uma ditadura militar que ceifou e desapareceu com milhares de pessoas, mas a universalidade está na figura materna, na luta de uma mãe em proteger a família a qualquer custo. Jonathan Glazer acerta em dizer que o uso da sonoplastia é “um outro filme”, tanto é que venceu o Oscar de Melhor Som. Se o som é “o outro filme” de Zona de Interesse, a atuação de Fernanda Torres é “o outro filme” de Ainda Estou Aqui. Aí está um bom presságio para a categoria de Melhor Atriz.

Porém, além das questões técnicas, ambos os filmes ressaltam o poder transformador do cinema: são potentes exercícios de memória e resistência. Do lado brasileiro, a luta pela memória e a importância de, independentemente de tudo, seguir resistindo; do lado britânico-alemão, as memórias da luta e a importância de, independentemente de tudo, resistir seguindo.

Zona de Interesse venceu o Oscar em um momento em que o fantasma do Trumpismo ameaçava a Casa Branca e era importante ressaltar o poder destruidor dessas sombras, algo que o filme faz. Agora, os Estados Unidos vivem o momento em que Trump já ocupa a Casa Branca. Talvez seja importante ressaltar qual é o resultado de políticas conservadoras de exclusão, premiando a obra que retrata isso com maestria. Tente adivinhar que filme é esse.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.