Eu, Ágatha Íris, já fui abusada/estuprada quando criança, desde os 9 até quase 14 anos de idade. Atitudes como essas são mais comuns do que se pensa. Entretanto, o pacto narcísico da misoginia e do cispatriarcado é tão fundamentalizado e solidificado que agressores deste porte ficam impunes.

Acontece que este pacto é alimentado em primeira instância na imagem do homem ideal: pai de família, cisgênero, branco, rico e, sobretudo, religioso cristão – um dos imaginários que impedem a sociedade de denominarem-no como um possível agressor. Instaurou-se uma ideia de que, para existir violência sexual é necessário existir uma cena deplorável, como são transmitidas e representadas nos filmes/séries/telenovelas que abordam tal temática, o que afasta nossa ótica de acontecimentos que fogem desse cenário.

Toda esta estrutura alimenta uma narrativa onde existe uma personificação do rosto deste agressor. E para que seja digno de pertencer a estes estereótipos, há uma necessidade de possuir agressividade, psicopatia, descontrole, desumanidade, etc. Porém, ter cara de agressor é um discurso construído através de um viés colonizador. Quem deve ser responsabilizado e criminalizado?

Dessa maneira, entre o pai de família, o desempregado e o preto, as suas conclusões sempre vão associar ou o desempregado/pobre ou o preto ao bárbaro. É simples, o agressor deve ser desumano, e quem são as pessoas desumanizadas na sociedade? Não é à toa que muitas pessoas acreditam que existem “homens com cara de que batem em mulheres”, por exemplo.

Isto afasta a real problemática para que os homens, – que se enquadram nesse imaginário ideal –, possam ser defendidos pela maioria. Afinal, se ele é tão perfeito assim, como cometeria algo tão cruel? Não seria uma brincadeira? E tudo isso vai se voltando contra a criança fazendo com que duvide do seu próprio trauma.

Em segunda instância, a maquiagem é acometida na família. Isto é, começam a instaurar valores carregados de uma linguagem e estética para que a sociedade acredite que é somente e/ou unicamente na família que as crianças devem aprender sobre sexualidade. Para que tal ato possa ser efetivado, existe a carência de propagar notícias que abalem membros familiares – principalmente se forem conservadores. Isto apenas acontece quando essa notícia fere a estrutura cisheteronormativa do núcleo familiar. Ou seja, se meu filho está fadado a “virar” LGBTI+, preciso encontrar caminhos para que isto não venha a acontecer.

Desta forma, aproveitam dessa condição para alegarem que as escolas não deveriam debater sobre sexualidade e identidade de gênero. E na busca de sustentar o argumento, disparam Fake News sobre o assunto, alegando que estes espaços “ensinam crianças a fazer sexo anal”, “distribuem kit gay e mamadeira de piroca”, como também “incentivam crianças a dançarem músicas erotizadas e assistirem pornografia”.

Contudo, como já mencionado, esta falácia vem carregada de uma linguagem e estética, e para toda linguagem e estética há um nome a ser dado, para eles seria “Ideologia de Gênero”, fazendo a família abominar tal prática: “como é possível deixar uma criança à mercê desse ensino?”.

Através de Fake News e negacionismo criam-se discursos perigosos, como “ser a família responsável de ensinar e falar com a criança sobre a sexualidade”, e não as instituições de ensino. Assim, são tirados os seus direitos de entender o que podem e não podem fazer com o seu corpo – o que para o pacto da misoginia é importantíssimo. A criança estaria fadada a ser ensinada por quem a viola, o que nos comprova uma análise do Ministério de Direitos Humanos, que aponta quase 90% dos casos de abuso/estupro de crianças vindos do ambiente familiar.

Em terceira instância, os espaços que podem e devem garantir a segurança desse corpo vulnerável ao cistema são compostos em sua grande maioria pela cismasculinidade. Desde a parlamentar à defensoria pública; desde a delegacia à unidade hospitalar. Ou seja, o poder se torna uma dominação política, segundo Karl Marx, mas sobretudo é a relação que se dá entre pessoas e instituições, já que o poder se dissolve na sociedade, segundo Foucault.

Isto quer dizer que, o pacto vai para além da subjetividade, agora se torna possível, cabível e “legal”. Já que leis e decisões perpassam em suas mãos. O que cria mais possibilidade de se defenderem e se deixarem impunes. Além de que, antes da luta antimanicomial, a maioria dos homens coordenavam espaços manicomiais, o que para a história foi considerada uma tortura política, tendo como objetivo usar como um deposito de lixo e colocar pessoas rebeldes nesses espaços.

Desta maneira, poderiam facilmente colocar neste espaço qualquer criança que ousasse denunciar tal ocorrido a fim de calar a sua voz. Sendo assim, o homem poderia se sentir no direito e no dever de passar a mão no corpo de uma criança tendo como álibi o fator circunstancial de estar humorado o suficiente para extrapolar o limite, sem se preocupar com o que poderá acontecer, mesmo que sua conduta viole o entendimento pacífico do STJ que diz que “alisar, encoxar, passar a mão, ainda que por cima da roupa, em menores de 14 anos poderá se configurar estupro de vulnerável”.

Mas isso acontece devido a toda essa rede de proteção ao homem cisgênero, afinal o mundo foi feito por e para ele. Se você não acredita, basta lembrar o caso da Mari Ferrer que foi acusada de “estupro culposo”, e que recentemente o seu agressor, André Aranha, empresário, foi absolvido pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

Em quarta instância, utilizam de sua autoridade – por ser mais velho, ou até mesmo conhecido – para chantagear a criança que se dispõe a denunciar, deixando-a com medo. E negada de todo seu direito, como dito antes, essa criança se torna refém. E se for uma menina, existe a possibilidade de chamá-la de louca. Já que durante a história a mulher esteve destinada à histeria, sendo ela alguém fantasiosa, dramática e nervosa ao extremo. E para uma criança, esse grau pode se intensificar, afinal estamos falando de alguém que “ainda não sabe de nada sobre a vida”.

Por outro lado, tendem a implementar o discurso da “brincadeira”, e ele acaba desfocando da problemática. Se uma “brincadeira” fez com que no futuro eu tentasse me suicidar, desenvolvesse inúmeros transtornos psicológicos e fosse internada numa ala psiquiátrica (totalmente desumanizada, onde fiquei algemada e sedada por horas), a sociedade precisa rever a sua ética, o seu valor e, sobretudo, o seu conceito. Porque antes de ser estuprada, atitudes como colocar a mão, dar presente e tocar no meu corpo aconteciam de forma frequente.

Afinal, denúncias sobre pornografia infantil crescessem 114% no país, foram mais de 28 mil ocorrências em 2020, cerca de 300 por dia. Além disso, fez com que as denúncias de exposição de crianças e adolescentes na internet estivesse entre os cinco tipos de violações mais denunciados ao Disque 100. Ou seja, praticamente todas as pessoas estão acostumadas a consumir tal conteúdo. E por ter tal costume a violência se torna habitual e, por isso, naturalizada e romantizada.

Por isso é que não podemos deixar de fora dos nossos diálogos essas crianças que sofreram e sofrem abuso sexual e estupro de vulnerável. Se faz urgente proteger esse corpo, assim como também romper com essa estrutura.

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