Adoção fora da curva
Descubra o perfil de quem é adotado no Brasil e histórias de famílias que fogem desse padrão
Por Ana Cecília
Rafael Lazaro tinha 23 anos quando soube que era adotado. Ele não era alheio à própria realidade. O motivo que fazia ele não desconfiar era outro. O amor, o cuidado e a luta de seus pais para que ele tivesse uma boa educação faziam Rafael se perguntar: “Será que alguém faria isso se não fosse por um filho biológico?”. Agora, aos 42 anos, ele reavalia: “Claro que faria.”
Professor de Didática Geral e Ensino de Língua Espanhola na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Rafael Lazaro é um homem preto. De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 2023, o número de crianças brancas adotadas foi quase quatro vezes maior ao de crianças pretas. O perfil escolhido pelos futuros pais é crucial no processo de adoção. Mas quem são os jovens deixados para trás?
Além da cor da pele, o sexo, o número de irmãos, a idade, a ausência ou a presença de deficiências também são decisivos para muitos adotantes. A maioria deles deseja uma única filha, menina, de até seis anos e sem deficiências ou doenças. Fora dessa curva, Cristiane Madanêlo adotou Orlando, um menino preto, próximo de completar sete anos. “Eu acho que as pessoas fazem pouco adoção tardia, e isso é um problema”, constata.
Ao falar sobre a própria experiência, Cristiane não esconde as dificuldades. Mesmo assim, ela pensa que as pessoas têm uma visão equivocada em relação aos desafios de adotar um filho de idade mais avançada. “Não é fácil, mas é possível.”
Orlando Madanêlo, agora filho de pais brancos, compõe uma configuração familiar inter-racial. “Tinha gente que não nos via como família”, relata a mãe. Professora de Língua Portuguesa no Colégio de Aplicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (CAP-UFRJ), Cristiane já utilizava uma perspectiva antirracista na profissão.
Entretanto, nem todos os casos são como o de Cristiane e Orlando. Rafael é um exemplo: seu pai era branco e sua mãe é negra de pele clara. Ele confessa ter sentido falta de um “lar afro centrado” na infância. Queria ter uma base para enfrentar a desigualdade e para se reconhecer como homem negro. Nesse último ponto, o contexto de Rafael se contrasta com o de Cristiane mais uma vez. “Como eu sou uma pessoa que trabalha com literaturas africanas, para mim, o Orlando se perceber negro era uma questão de respeito a ele”, destaca a professora.
O respeito, a segurança, o acesso à cultura e à educação de qualidade são alguns dos direitos garantidos a crianças e adolescentes por meio da Constituição Federal de 1988. O acolhimento em abrigos e o processo de adoção são formas de reafirmar esses direitos a crianças em situação de vulnerabilidade.
“A adoção tem uma história de maltrato e abandono, e eu passei por esse abandono”, conta Rafael. Ele foi adotado com apenas três meses de vida, depois que sua mãe biológica o deixou em um hospital e não voltou para buscá-lo em um mês. De forma similar, os parentes biológicos de Orlando enfrentavam dificuldades para cuidar dele. Nascido em uma comunidade em Santa Cruz, no Rio de Janeiro, seu pai biológico deixou a mulher e os filhos.
Essa mudança na vida das crianças cria a concepção de que um filho por adoção deve ser mais grato a seus pais do que um filho biológico. Rafael discorda. Para ele, o amor por adoção é uma troca: “A gente queria muito um lar, mas eles também querem muito um filho.” Considera que, da mesma forma que seus pais eram uma presença constante em sua vida, ele era presente para seus pais.
Cristiane Madanêlo também acredita que seu filho transformou sua família. Em especial, ela cita o avô de Orlando, que tinha comportamentos racistas no passado. “Meu pai era apaixonado pelo Orlando e vice-versa”, contrapõe Cristiane. Hoje, Rafael se sente realizado por trazer para sua família a afro centralidade que ele gostaria de ter experienciado quando criança. “É curioso que eu, mais velho, com as minhas discussões culturais, acadêmicas, termino levando isso para a minha casa”, pontua.