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‘A Verdadeira Dor’: o tema sensível do roteiro de Jesse Eisenberg
Após levar o Globo de Ouro e o Spirit Awards, filme é um dos favoritos ao prêmio de Melhor Roteiro Original no Oscar.
Por Patricia Dantas
‘A Real Pain’, título original do filme de Jesse Eisenberg, traz um duplo sentido: pode se referir à expressão idiomática destinada a um sujeito irritante e desagradável; ou, em sua tradução literal, a uma dor real, verdadeira, genuína. A versão brasileira optou por intitulá-lo como ‘A Verdadeira Dor’, levando à suposição de que haveria alguém carregando uma verdadeira dor em detrimento de outros com suas dores falsas. Algo reforçado quando os personagens comparam suas angústias às de seus antepassados, vítimas do holocausto. Contudo, em nenhum momento há um tom condenatório na forma como os males dos personagens são revelados ao longo da trama. Pelo contrário: Jesse Eisenberg nos entrega um roteiro muito sensível, que nos leva a empatizar com as dores de cada um ali e, assim, nos conectarmos com nossas próprias feridas.
Na apresentação dos personagens, vemos um rapaz sentado na área de espera de um aeroporto, com expressão melancólica no rosto. Saindo de casa, conhecemos a personalidade controladora de David, por meio de uma sequência de mensagens que envia a Benji: “estou saindo de casa, lembre-se que precisamos chegar no aeroporto 3 horas antes”; “estou preso em um engarrafamento”; “consegui sair do engarrafamento”; “você já está a caminho?”. David chega ao aeroporto e vai imprimir o cartão de embarque. Benji o assusta, chegando de surpresa por trás e soltando uma gargalhada. Não há mais traços de melancolia em sua expressão. Benji é divertido, falante e está animado para a viagem que vão fazer juntos.
Aguardando o embarque, o diálogo revela a natureza da viagem: os dois são primos e vão fazer um tour pela Polônia para conhecer as origens da avó. Somos convidados a embarcar nesta viagem com David e Benji. À medida que o tour se desenrola, suas personalidades, suas dores e a complexidade desta relação são reveladas.
Nas interações iniciais, percebemos que há algo não dito na relação dos dois. Uma tensão que se revela sutilmente na maneira como David pergunta se Benji quer conversar sobre os acontecimentos dos últimos meses, ao que ele secamente responde que não. Ou quando Benji esquiva-se de responder se está procurando emprego e pergunta se David “ainda trabalha vendendo coisas na internet”, com tom de desdém.
Com uma estrutura episódica, o plot externo explora o tour pela Polônia e a reação dos protagonistas aos locais visitados. Mas a verdadeira força do roteiro está no que se desenrola no plot interno: dois homens revelando a sensibilidade que está por trás de suas personalidades opostas e restabelecendo a conexão que compartilhavam na infância.
Benji usa sua personalidade extrovertida, carismática e divertida para socializar e não fazer contato com sua dor. Mesmo quando suas emoções escapam – muitas vezes de forma desproporcional, como quando grita com o gentil guia – essas emoções na superfície estão lhe protegendo de fazer contato com sua verdadeira dor.
Já David se retrai. Não se aproxima dos outros e não se conecta. Assim, se protege de situações que possam sair de seu controle. O controle, a racionalização e o congelamento são suas estratégias.
David verdadeiramente se importa com Benji. Justamente por isso, a natureza espontânea e imprevisível do primo representa uma constante ameaça a sua estratégia de sobrevivência. E o seu arco se conclui quando finalmente perde o controle e revela ao grupo de turistas todos os sentimentos conflituosos que nutre pelo primo.
Da mesma forma, Benji admira David. Alguém que “deu certo na vida”. David confronta diretamente as crenças que Benji desenvolveu para evitar olhar para seus próprios problemas. Em um momento de sinceridade, se queixa com o primo: “você costumava ser diferente, sabia? Você era tão emotivo. Você chorava por tudo”. Como quem diz: “você costumava ser como eu, você me traiu ao se adaptar ao mundo”.
Diferente de David, o arco de Benji não é tão conclusivo. Terminamos o filme genuinamente preocupados com aquele personagem, refletindo sobre ele por muito tempo depois da sessão: “será que ele vai ficar bem?”
Benji representa o quão adoecida está nossa sociedade. Ele tem razão quando diz que estamos amortecidos. Sua indignação é autêntica com a falta de empatia que desenvolvemos. Sim, precisamos olhar para isso e tentar transformar nossa forma de existir aqui. Mas se não desenvolvermos estratégias para nos adaptar, conseguiremos sobreviver enquanto isso?
Ao nos familiarizarmos com David, que aprendeu a amenizar sua sensibilidade e construir uma vida funcional com emprego e família; e Benji, que está lutando para sobreviver por estar o tempo todo à flor da pele; percebemos que existe algo profundo e universal que nos conecta enquanto seres humanos. O que nos distingue é a forma única que aprendemos a lidar com nossa dor para sobreviver.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.