Por Elisabeth da Silva dos Passos

A independência do Haiti aconteceu no dia 1° de janeiro de 1804. A parte leste da ilha de São Domingos era uma das colônias mais prósperas da França, produzindo grande parte do açúcar e café consumido pelos europeus. Produção feita por dois terços de africanos trazidos como escravos e seus descendentes, na atual região do Haiti, e que não imaginavam jamais que conseguiriam se libertar do jugo do colonizador. Lutaram não só contra os franceses, mas também os seus apoiadores ingleses e espanhóis, tornando-se um perigo por ser um possível exemplo para outras colônias ao redor do mundo.

Esse processo teve origem com a diminuição do controle francês sobre sua colônia, uma vez que, a própria França vivenciava a sua Revolução, levando um tempo para que as novas estruturas se estabilizassem (1789-1799). No Parlamento Haitiano ocorria um acirramento da luta entre seus membros, brancos, negros e mestiços, ocorrendo uma série de levantes entre os escravizados no ano de 1791. Nesse conflito, envolveram-se franceses, ingleses e espanhóis. Toussaint L’Ouverture liderou os negros e ex-escravizados conseguindo governar a ilha denominada como República de São Domingo, mas mantiveram-se ainda sob a tutela da França. A independência somente ocorreu no ano de 1804 com Jean-Jaques Dessalines, que governou a ilha e depois se proclamou seu imperador, como Napoleão Bonaparte. O restante da ilha, que hoje corresponde ao território da República Dominicana, manteve-se sob domínio espanhol.

Contudo, como o primeiro país negro livre fora da África, havia esta dificuldade de se firmar economicamente em termos de produção, pois o que faziam foi completamente destruído e, os demais países, não iriam fortalecer tal economia nascente, por sua importância no processo de independência das demais colônias existentes na América Latina, incluindo o Brasil. Se, por um lado, esses países buscavam enfraquecer o Haiti e recrudesciam a repressão sobre as colônias existentes, por outro, o recém-país independente dava suporte a outros que buscavam o mesmo caminho. Simon Bolívar no início do século XIX se refugiou na ilha, recebendo o apoio de Alexandre Pétion (um dos revolucionários que entrou em conflito com Toussaint L’Ouverture, se exila na França e depois retorna, e governa o país). Outro exemplo foi o de Francisco de Miranda, que esteve na ilha em 20 de fevereiro de 1806, um dos líderes da independência da Venezuela.

Dois fatores dificultaram as potencialidades do Haiti como país. O primeiro, como dito anteriormente, foi a ruptura com o sistema da grande plantação (plantation, como é usado nos livros didáticos). O segundo, a inabilidade entre os grupos sociais haitianos que assumiram o poder pós-revolução. Um dos grupos desejava se voltar para a forma de governo africana, outros desejavam adotar o modelo europeu francês. Isto fez com que ocorressem sucessivos governos com características despóticas e, na verdade, não houve a construção de um novo modelo, mas sim a adoção de velhas práticas pelos novos detentores do poder. Nesse processo, marcante é a força que gerou a independência, e o que representa. Um dos seus símbolos é a sopa de Joumou.

A sopa de Joumou: sua importância histórica

Maria Clara do Haiti ou Marie-Claire Heureuse Félicité, esposa de Jean-Jacques Dessalines, após a morte de seu esposo foi a primeira e única imperatriz do Haiti após sua independência. A imperatriz instituiu a sopa de Joumou como um alimento nacional, devendo ser consumida sempre no primeiro dia do ano, pois era um alimento acessível somente aos colonizadores franceses, os africanos escravizados não podiam consumi-lo. Então, Maria Clara ordenou que fossem selecionados todos os ingredientes da sopa para sua feitura e distribuição ao povo haitiano no dia da independência. 

A sopa de Joumou expressa a força e coragem do povo haitiano que possui uma história única. Assim, evidenciamos que a sopa de Joumou representa a identidade nacional, esse pertencimento e esse orgulho por esse fato histórico específico. Quando refazem o prato todo dia primeiro reiteram essa identidade libertária que os motivou a se rebelar e conquistar sua independência.

Por que o nome Joumou ou Jumou?

Joumou é uma construção oriunda da formação da língua crioula haitiana. Línguas crioulas são aquelas em que o processo de transmissão intergeracional não ocorre entre falantes nativos. Com isto queremos dizer que a utilização da língua francesa no Haiti e a presença de africanos trazidos como escravizados de diversas origens fez com que houvesse a formação de uma língua transitória (pidgin), e posteriormente, o desenvolvimento de uma língua haitiana. Joumou vem do jerimum, termo utilizado pelos povos originários que habitavam aquela região, possivelmente taínos.

De acordo com o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) define como patrimônio imaterial “as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas – com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados – que as comunidades, os grupos e, em alguns casos os indivíduos, reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural.” Esta definição está de acordo com a Convenção da Unesco para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial, ratificada pelo Brasil em março de 2006.

Conhecendo a receita

A receita da Sopa Joumou

Receita tradicional de sopa de joumou

Ingredientes

1,5 kg de carne, cortada em pedaços 

1/2 colher de sopa de sal

3 cravos

Tomilho a gosto 

Suco de limão 

2 dentes de alho picados 

1 colher de sopa de salsinha bem picadinha 

1,5 kg abóbora, descascada, com cordas e sementes removidas

2 cenouras 

1 cebola grande 

1 nabo médio 

1 talo de aipo 

1 ou 2 pequenas raízes inhame médio 

2 batatas médias 

1 colher de sopa de sal 

1/2 xícara de macarrão

Modo de preparo:

Coloque a carne cortada em pedaços em uma panela. Acrescente ½ colher de sal, cravo, tomilho, suco de limão, alho e salsa. Adicione 2 xícaras de água até cobrir tudo e cozinhe em fogo médio;

Lave, descasque e esmague a abóbora, cenoura, cebola, nabo, inhame e batata. Quando tudo estiver macio, adicione a carne acrescente 1 colher de sopa de sal, cubra tudo com uma tampa ou alumínio e volte a cozinhar;

Retire a polpa e amasse até se tornar um purê;

Adicione 2 xícaras de água quente para o purê de abóbora, e coloque de volta na sopa;

Adicione o macarrão e reduza o calor do fogo, deixando cozinhar destampado por uns 10 minutos, sempre mexendo com a colher. Por fim, a sopa de jumou está pronta para ser servida.

Fonte: https://www.ecycle.com.br/sopa-de-joumou/

Na culinária, as receitas podem e sofrem adaptações e mudanças, refletindo transformações de âmbito sociocultural. Entretanto, quando tratamos de um prato como a Sopa de Joumou, que reflete um processo histórico de suma importância para o povo haitiano, mudar um tempero ou outro, não irá afetar a tradição quando preparam essa iguaria no dia primeiro de janeiro de cada ano.

Para maiores informações ver:

JAMES, C. L. R. Os jacobinos negros. São Paulo: Boitempo, 2010.

MOREL, M. A Revolução do Haiti e o Brasil escravista: o que não deve ser dito. Paco: Jundiaí, 2017