A rainha do bate-cabelo, o grito maior: entrevistamos Marcia Pantera
Conversamos com Marcia Pantera, a maior estrela das noites de São Paulo, uma lenda viva e artista atemporal. Além de precursora do movimento bate-cabelo, musa do estilista Alexandre Herchcovitch e primeira drag queen a estampar a capa de uma revista, Marcia Pantera falou sobre seus 36 anos de carreira, as vezes que deu a volta por cima e como se tornou uma das maiores artistas do cenário drag do mundo
Por Kaio Phelipe
Conversamos com Marcia Pantera, a maior estrela das noites de São Paulo, uma lenda viva e artista atemporal. Além de precursora do movimento bate-cabelo, musa do estilista Alexandre Herchcovitch e primeira drag queen a estampar a capa de uma revista, Marcia Pantera falou sobre seus 36 anos de carreira, as vezes que deu a volta por cima e como se tornou uma das maiores artistas do cenário drag do mundo.
Como a Marcia Pantera surgiu?
Eu caí de paraquedas na arte drag. Quando assisti a um espetáculo da Marcinha do Corinto na boate Nostro Mondo, fiquei hipnotizado por ela. Eu já frequentava a noite como cliente e amava dançar. Sabe quando você sai para curtir e não se preocupa com nada do que está acontecendo ao redor? Então, eu gostava de sair assim, só para dançar. Aí me falaram que ia ter um concurso de drag queen e eu acabei me inscrevendo, mesmo não tendo nada. Uma amiga minha, que hoje mora na Alemanha, disse que ia me maquiar e eu peguei um vestido da minha mãe, cortei, customizei e fiz toda uma cena. Eu tinha 17 ou 18 anos e acabei ganhando esse concurso e um dos prêmios era fazer parte da programação da casa. Não lembro bem por quanto tempo, talvez por seis meses ou um ano. As pessoas acabaram gostando do meu show e caí nas graças de Miss Biá. Nessa época, eu ainda não morava em São Paulo. Eu estava morando em Suzano, porque lá eu jogava vôlei e não queria largar o esporte. Amo jogar até hoje, mas sempre que eu fazia show, era uma diversão. Comecei a ganhar cachê só depois de muitos meses. A arte caiu na minha vida como uma benção, sabe? Tudo mudou. Tudo ao meu redor mudou. Eu achava que no nosso meio – que antes a gente chamava de GLS – era tudo muito incrível, tudo maravilhoso. Eu não via maldade em nada e foi assim durante muitos anos. É engraçado que sempre vou lembrando de coisas novas sobre esse tempo. Em toda entrevista que dou, vou lembrando de alguma coisa que não falei da última vez. Mas a verdade é que a primeira vez que me montei foi incrível, era a realização de um sonho. Lembro que fiquei a cara da Whitney Houston.
O que a Miss Biá significa para você?
A Miss Biá tinha um coração tão gigantesco. Aprendi muito com ela. Tenho uma família maravilhosa, que sempre me ensinou o lado do amor. Minha avó, há muito tempo atrás, já dizia que somos todos iguais e ela falava isso com muita convicção. Sempre acreditei nisso, mas demorei a ver que as coisas não são simples assim. A Miss Biá entrou na minha vida como um furacão e me apresentou muita coisa. Mas eu também não posso deixar de falar da Frank Ross, que foi uma pessoa que me levou para vários lugares quando eu já era uma Marcia Pantera mais lapidada. Antes disso, a Miss Biá me abraçou, me levou, bateu o pé por mim na Nostro Mondo. E aí eu ganhei muita coisa, muito amor, muito carinho, muita gentileza. Coisas que são de graça e dadas pelo ser humano. Quando o ser humano sabe doar amor… porra, a Miss Biá é foda. Ter a Miss Biá na minha vida foi muito foda. Depois de alguns anos, continuei tendo a Miss Biá e ela sempre me apresentava como “o grito maior, Marcia Pantera”. Ela me levou para conhecer a casa dela, me levou para jantares, me convidou para tanta coisa. Mas o mais importante foi ver o tempo passando na nossa frente. Naturalmente, a gente vai envelhecendo e ela foi ensinando a gente a como lidar com a idade. Ela sempre dizia “Pantera, fiz 65 anos”, “Pantera, fiz 70 anos”. Imagine só: uma pessoa que te abraça, independente se você é branca, preta, gorda, magra, travesti, afeminada, se tem peito, se não tem. Ela era muito inteligente.
Ah, eu não posso deixar de comentar de quando tive uma queda. Tive um problema com as drogas, foi uma queda bem feia e a Miss Biá foi uma pessoa que, quando eu permitia que alguém se aproximasse, falava assim “não esqueça que o seu talento nunca vai envelhecer”. Por alguns segundos, eu voltava para a realidade e escutava aquilo. Mas, depois, o dragão me pegou de uma maneira e me engoliu, me mastigou, me mastigou de novo e me cuspiu, depois me mastigou e me cuspiu mais uma vez. E a Biá, com a maturidade, com tudo o que ela tinha visto na noite, tudo o que ela já tinha passado, foi uma pessoa incrível. Quando recebi a notícia da morte, foi muito foda. Ela ficou bem ruinzinha. Na pandemia, vi a Miss Biá de longe duas vezes no Largo do Arouche e, nessas vezes, eu falava “depois eu passo na sua casa”, só que o medo de levar ou pegar covid era muito grande e não permitiu que essa despedida acontecesse. Quando ela morreu, foi uma paulada na cabeça. Uma perda gigantesca para a nossa arte. A Biá como pessoa e como artista sempre foi incrível. Mas eu também vejo que o mundo está olhando para a morte de outra maneira. A morte está sendo uma coisa esquecida em poucos dias, em minutos. As pessoas estão tão conectadas na internet, que a cada segundo tem uma coisa diferente para olhar, e acabam esquecendo das histórias e a história da Miss Biá é gigante.
Qual memória tem da 1° Parada de São Paulo, que aconteceu em 1997?
Meu Deus!!! Você vai me fazer voltar no tempo. Eu lembro que a gente estava na Nostro Mondo e tinha um burburinho, “tal data, a gente vai para a Avenida Paulista, vai ser Parada Gay”. Eu ficava me perguntando o que era isso, de Parada, e todo mundo dizia “vai lá, vai lá”. Quando eu cheguei na Paulista, tinha pouquíssima gente. Tinha a Kaká di Polly, a Miss Biá e mais outras, que agora eu não vou lembrar o nome. Lá, tinha uma estátua enorme, de uns 3 ou 4 metros de altura. E, como eu já fazia show subindo e descendo nas coisas, subi no concreto, no braço e sentei no pescoço da estátua. Eu nunca vou esquecer isso. A estátua começou a balançar de um lado para o outro. Eu olhei para baixo, o coração ficou gelado e o cu trancou. Eu pensei “se eu cair daqui, já era para mim”. O pessoal lá embaixo estava todo mundo aplaudindo, gritando “Pantera, Pantera”. Aí a polícia apareceu e eu desci rapidinho. A 1° Parada tinha pouca gente, mas era todo mundo com um coração grande, que peitou a violência. Era tudo diferente. De uns anos para cá, está tudo diferente e eu entendo todas as mudanças. Mas lembro que a 1° Parada foi incrível.
Como você e Alexandre Herchcovitch se conheceram?
O pessoal costumava ficar conversando do lado de fora da Nostro Mondo. Em uma noite de show meu, o Ale apareceu lá com o cabelo comprido, falou com todo mundo e perguntou se eu era a Marcia Pantera, disse que tinha amado o meu show, coisa e tal e disse que era estilista. Eu pensei “mais um estilista”. Alguns estilistas já tinham prometido fazer uma roupa para mim e depois sumiram. O Ale me deu o número de telefone dele e pediu para ligar. E eu só pensava “mais um estilista falando a mesma coisa”. Isso foi em um sábado e, na segunda-feira seguinte, liguei por volta das 9 ou 10 horas da manhã. Nós dois fomos para o Brás e ele comprou alguns tecidos. Ele estava com um carro babadeiro e, na volta, o carro não pegou. Ele precisou ligar para o irmão. Nós fomos para a casa da família dele e, chegando lá, todo mundo me recebeu maravilhosamente bem. O Ale começou a tirar as medidas, a cortar papel e costurar. Eu provei a roupa e ficou incrível. Esse foi o nosso primeiro contato. Recentemente, abri uma exposição dele e também estarei no filme que irá sair sobre ele, é um documentário e vai ter muita Marcia Pantera.
Como foi participar do filme Corpo Elétrico, dirigido por Marcelo Caetano?
Esse filme é maravilhoso. Eu já conhecia o Marcelo. Fui protagonista de um filme anterior dele, chamado Verona (2013). O Marcelo também dirigiu a Gretta Star, a Michelly Summer, a Marcela Bethânia. Aí eu lembro que ele falou “olha só, eu tenho um filme que é a sua cara, fiz o texto para você”. Quando ele me deu o texto, era um bloco imenso. Eu falei “amigo, obrigado, mas acho que não vou conseguir”. Ele insistiu para eu ler. Nisso, eu falei “quer saber, vou mergulhar nessa”. Aí fiz o Verona, depois atuei em alguns curtas e ele me convidou para fazer Corpo Elétrico. O Marcelo Caetano foi um professor para mim. Ele me dirigiu, me mostrou como tudo funciona, foi um mestre. Eu faço show, performo, levo a arte para o palco, mas fazer tudo isso para a câmera é muito diferente. Lembro que ele me deu um mês para pegar o texto todo. Aí fui fazer o teste com o cu na mão e ele me disse “olha, você está bom, mas não vou te colocar como protagonista”, eu disse “ué, você não fez o filme para mim?”, “pois é, você está bom, mas não muito, eu te daria mais 15 dias, mas tenho certeza que você não vai conseguir, vou te colocar como personagem do bar, você vai ser a pessoa que atende no bar”. Eu disse que “não, não quero, não”. Aí voltei para casa e mergulhei naquilo. Falei com ele que 15 dias era muito, que eu precisava só de mais uma semana. Aí fiz o teste de novo e ele falou “porra, agora sim”. Nesse dia, saí de lá todo feliz, rindo à toa. Caí de moto no mesmo dia. Me machuquei, mas levantei, fui embora e depois fiz o filme.
Como se sente em relação ao sucesso do bate-cabelo?
Quando criei o movimento de bate-cabelo, ele não tinha tanta força. Aos poucos, fui ensaiando para que ficasse mais bonito. Eu usava uma peruca presa na cabeça. Minha tia trançava meu cabelo e costurava as telas na minha cabeça. As pessoas achavam que a peruca ia cair de tanto que eu girava, mas não caía. Eu era a única a fazer isso. Aos poucos, fui adaptando e as outras drags falavam “ah, aquele negócio que você faz girando a cabeça, posso fazer também?”. Eu poderia ter falado que não, que só eu podia fazer. Mas eu sou humilde para caramba. Imagine só, se só eu tivesse feito isso, não teria ficado tão grande. Várias artistas incríveis me ajudaram a aperfeiçoar o movimento. A Veronika fazia um bate-cabelo belíssimo. A Veronika partiu cedo, mas era de um talento muito especial e uma bicha totalmente do bem.
Como foi estourar antes da internet?
Eu alcancei lugares que não imaginava quando ainda não tinha internet. Ser capa de revista, trabalhar com moda, estar na TV, nas festas, na Folha de São Paulo, em lugares do high society. Isso tudo aconteceu por conta do trabalho bem feito que eu faço. As pessoas enxergaram a força, a atitude e o espetáculo que é a Marcia Pantera. A vida depois da internet mudou muito, mas está tudo bem também. Todas as coisas mudam. Eu sou de me montar para fazer espetáculo. Não sou de me montar para ficar em casa e criar conteúdo para as redes sociais. Se eu fizesse isso, meu alcance seria muito maior. Mas estou confortável e feliz com o meu trabalho. Tudo mudou, sim. Mas eu preciso lembrar do que aprendi há muitos anos atrás: cada um tem o seu sonho e vai correr atrás dele como preferir. Quem sou eu para julgar o trabalho de alguém? Cada um corre atrás do seu da forma que quiser e está tudo bem. Eu acho que a cena drag poderia ser mais unida para a nossa arte ser mais valorizada. Ainda falta muito para existir uma união. A única coisa que os outros países têm que o Brasil não tem é um patrocínio para investir pesado na nossa arte. Claro que algumas drags já têm algumas marcas ao lado, mas todas surgiram junto com a internet. E as que já estavam trabalhando e abrindo o caminho antes? A gente já é considerado velho aos 50 anos. Sabe onde entendi que eu tenho valor? Na Alemanha. Uma vez, quando eu estava no camarim, vi um bicha, agora esqueci o nome dela, com 75 anos e de muleta. Eu fiquei só observando. Eu precisava aprender, aquela artista era uma escola. Ela fez a própria maquiagem e ficou bonita. Quando acendeu a luz do palco, puta que pariu, era de uma beleza, de uma postura, sabe? Agora olha a situação da Isabelita dos Patins, no Rio de Janeiro. Ela é uma pessoa que fez tanto pela cidade. Jura que, aos 80 anos, ela precisa fazer vaquinha para sobreviver? Como que as casas não contratam ela, para receber o público ou para qualquer outra coisa? A bicha tem nome e sobrenome. Os artistas vão envelhecendo e as pessoas vão esquecendo. Tem muita coisa acontecendo na nossa cara e a gente não abraça as pessoas que fizeram história. Eu até entendo que as pessoas prefiram dar oportunidade para o seu ciclo de amizade. É normal pensar “ah, a minha amiga estava comigo ontem, então vou chamar ela para abrir o meu show”. Mas tem tantas artistas que fazem um show bom e acabam não tendo oportunidade. Eu penso tanta coisa sobre isso, mas tomo cuidado para dar a minha opinião.
Sinto falta de falar algumas coisas, mas acabo achando que não vale a pena, que ninguém vai lembrar. Por exemplo, a gente tem vários realities e ninguém nunca me chamou para nenhum. Então me fala quem me esquece e por qual motivo. Tudo bem eu não participar, mas tenho certeza que se eu sentasse em uma daquelas cadeiras, eu ia dar o meu nome e fazer um trabalho muito legal. Eu tenho postura e uma bagagem gigante, mas sempre acabam preferindo quem tem números maiores. Então não vão me chamar e, se eu depender deles, não vou chegar lá. E estão chamando outra drag preta? Não. Quando falo sobre as coisas que eu fiz, eu era sempre a única artista preta. Às vezes, o nosso próprio meio não nos abraça. O gay padrão nem sabe o que é preconceito. Ele vai escutar alguém xingando ele, chamado de viado. Mas deixa passar uma travesti, uma afeminada, um preto, um viado gordo para ver o que ele vai escutar. O gay padrão, que tem voz e poderia abrir espaço, não vai fazer isso. Agora vê a Leonora Áquilla. Porra, ela está lutando pra caralho. Empregabilizando um monte de gente. Eu fico todo arrepiado. Parece que a gente tem que ficar pedindo autorização o tempo todo. Eu entendo o nosso país e entendo que a gente precisa lutar, mas colocam a gente dentro de caixas o tempo todo e parece que tudo o que a gente está fazendo é sair de dentro dessa caixa para ficar igual a todo mundo.
A gente só quer dignidade e poder trabalhar em paz, mas dão um monte de problemas para a gente. Os outros rotulam a gente e parece que nós é quem precisamos provar o contrário. E são coisas que a gente nunca foi. Isso cansa demais. As pessoas fazem piadas sobre os outros para tirarem o foco delas. Todo mundo quer passar batido. As pessoas falam que abraçam as causas, que já entenderam tudo, mas é mentira. É só para saírem limpos da história. Se eu fizer alguém rir de você, eu vou estar tirando o meu da reta. Eu estou amadurecendo e vendo o mundo com outros olhos. A gente é o país que mais mata LGBTQIAPN+ no mundo e tudo piorou com o Bolsonaro. Eu comecei a ter medo de ir para a rua, me vi tendo esse medo. Nunca tinha acontecido isso nos meus 54 anos de vida. A minha vizinha votou no Bolsonaro, fui falar com ela, perguntei se ela tinha tirado a máscara. Sabe, eu só quero seguir fazendo o meu trabalho e as minhas viagens. Amo estar fora do meu país. Quando volto para cá, volto carregadíssimo. Pego uma energia babado aqui, mas depois preciso sair de novo. Agora todo mundo quer falar com a Marcia Pantera porque virei internacional, mas eu sempre estive aqui.
Tem muita coisa acontecendo na nossa cara e a gente não abraça as pessoas que fizeram muita história. Quando eu fizer um podcast, desses bem grandes, com bastante alcance, vou rasgar todos os verbos que eu preciso. Algumas semanas atrás, aconteceu um episódio envolvendo uma estilista que é trans e racista e que foi fazer um show. Fiz um comentário sobre ela com outra pessoa e essa pessoa não abraçou a minha causa. Ela ficou com medo de chegar para a estilista e dizer que ia cancelar o show por conta disso e daquilo. Sabe quantas vezes já me cancelaram? A primeira vez foi quando eu jogava vôlei e fui fazer um teste lá no Pinheiros. O cara falou “você joga muito bem, mas eu não posso ter pessoas como você aqui”. No segundo teste, foi a mesma coisa. Como assim “uma pessoa como eu”? Eu ainda nem entendia o que isso significava. Muitos lugares fecharam as portas para mim. Mas muitos lugares abriram. É aí que está o babado. Eu vou dar o meu melhor.