A rainha das drags: uma entrevista com Lorna Washington
Diva máxima da noite carioca e conhecida como a Fernanda Montenegro do mundo LGBTQIAP+, Lorna Washington é um ícone da cultura drag que fez e faz história
Por Kaio Phelipe
Diva máxima da noite carioca, referência para todo mundo que começou depois e conhecida como a Fernanda Montenegro do mundo LGBTQIAP+, Lorna Washington é um ícone da cultura drag e transformista, que fez história nas lendárias boates Papagaio, Incontrus, Turma OK e Le Boy.
Artista impecável, sempre usando do humor e da irreverência, teve sua história registrada no excelente documentário “Lorna Washington: Sobrevivendo a Supostas Perdas”, de Rian Córdova e Leonardo Menezes, no qual, além de dividir suas conquistas, fala também como começou a atuar na defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids.
Em sua primeira entrevista depois de uma longa internação em decorrência das complicações da diabetes, Lorna nos contou um pouco da sua trajetória artística, lembrou de turnês internacionais, dos primórdios da cena LGBTQIAP+ e sua relação com outras grandes personalidades como Rogéria, Rose Bombom e Luana Muniz.
Como surgiu Lorna Washington?
Lorna Washington – Na realidade, eu não queria fazer show. Eu era frequentador do Sótão, uma boate que tinha na Galeria Alaska, e tinha um grande amigo chamado Junior Brasil, que estava sempre comigo. Embaixo do Sótão, tinha uma boate chamada Katakombe, que era uma casa de samba, onde a Alcione se apresentava. Também na Katakombe, às nove e meia da noite, tinha um espetáculo da Cláudia Celeste e, às duas e meia, tinha um espetáculo como esses de hoje em dia, de variedades, que entra artista e sai artista, um atrás do outro. Era um rapaz que apresentava, Ronaldo Reis. Uma vez o Júnior Brasil falou “a gente bem que podia se apresentar”, eu respondi “tá maluca, bicha? Tá doida? Minha mãe não pode saber que eu sou viado”. Ele insistia e eu dizia não. Um dia, saindo da Galeria Alaska, a gente encontrou a Cláudia Celeste tomando um café em um botequim e o Júnior passou por ela, cumprimentou cheio de sorrisos e disse que a gente queria se apresentar. Eu perguntei “a gente quem? Que viado maluco!” A Cláudia Celeste adorou e marcou o show para a sexta-feira seguinte. O Júnior fez uma propaganda durante a semana, convidou o Rio de Janeiro inteiro para estar na Katakombe, chamando pra ver o show dele e da Bicha do Leque. Eu ainda não era Lorna, era a Bicha do Leque, porque eu vivia com um leque, morrendo de calor e me abanando. Na sexta-feira, todo mundo estava lá para ver a gente. O Sótão ficou vazio nesse dia. Menina, quando a gente entrou, era um bando de gente para ver o nosso show. Foi um babado. Aí quando perguntaram o meu nome, respondi Lorna, em homenagem a uma amiga americana, já falecida, mas também por causa da Judy Garland. Judy Garland teve dois casamentos. O primeiro gerou Liza Minnelli e o segundo gerou Lorna. Uni o útil ao agradável. Eu gostava muito da Judy. E Washington foi porque essa minha amiga era de lá. Mas o motivo principal é que não dava para continuar sendo a Bicha do Leque. Foi tão boa a repercussão do show, que a Cláudia me chamou para fazer um espetáculo montado, com rapazes e ela dançado no final. Ficamos um ano em cartaz. Fomos apresentar até no Chacrinha, em 83. Não ganhamos, mas ficamos em terceiro lugar.
Como foi dividir a vida e os palcos com grandes nomes, como Rogéria, Rose Bombom e Luana Muniz?
Lorna Washington – Quando Luana Muniz e Rose Bombom chegaram, eu já estava. As únicas que começaram antes de mim foram Lola Batalhão, Rogéria, Jane di Castro. Todas as outras que apareceram foram depois de mim, muito tempo depois. Eu abri as portas da Zona Sul para os espetáculos. Não existia espetáculo de transformista em boate na Zona Sul, só no subúrbio. No Centro, havia Laura de Vison e Meime dos Brilhos, uma no Cabaret Casanova e a outra no Boêmio. Na Zona Sul, nada. Quem fazia shows lá eram as travestis. A Galeria Alaska ficava lotada, todo mundo enlouquecido com as travestis, elas tiravam a roupa. Hoje são os rapazes que ficam nus, mas antigamente eram elas. Faziam xereca e tudo, aquendavam, pintavam, passavam tinta e ficava igual xereca mesmo.
Quando surgiu seu ativismo em defesa dos direitos das pessoas vivendo com HIV/Aids?
Lorna Washington – Entrei nessa causa de paraquedas. Já fazia shows em algumas boates, na Katakombe, na Papagaio, na Incontrus. Aí um grupo de pessoas me procurou querendo fundar o Gapa [Grupo de Apoio à Prevenção da Aids] – Rio de Janeiro. Já existia o Gapa – São Paulo. Daí me pediram para fazer uma festa como forma de divulgação e arrecadar alguns materiais, luvas, fraldas, remédios. Eu fiz a festa na Papagaio, que foi o pontapé inicial para as festas do Gapa. Um anos depois fizemos outra, que foi uma festa muito boa e muito bonita, com a presença de várias personalidades do cenário político e artístico. Comecei assim, por acaso e para ajudar as pessoas. Eu vi meus amigos morrerem. Os clientes que iam na Papagaio, eu já não via na semana seguinte. Nessa época, conheci a doutora Márcia Rachid, que trabalhava no Hospital Gaffrée Guinle, e me perguntou se eu não queria fazer um trabalho voluntário lá. Eu fui e fiquei fazendo uma espécie de triagem com as pessoas que já haviam tomado o AZT e as que nunca tinham tomado. O AZT deixava a pele escamando, parecia uma cobra. Eu juntava as pessoas que já tinham passado dessa fase e as que não tinham tomado para elas perderem o medo. Era uma roda de conversa, tudo muito agradável. Tinha gente que falava, falava, falava e gente que entrava e saía sem dar um pio. Tinha gente que aparecia e depois de uma semana tinha morrido. Teve gente que começou o tratamento e parou falando que o pastor tinha curado. Quando aparecia de novo, eu falava “ué, que que houve?” A Márcia ficava doida comigo, falava “Lorna, pelo amor de Deus, não fala nada”. Mas eu falava. É isso, não procurei a causa, foi ela que me procurou e costumo dizer que fui mordido pelo bichinho da solidariedade. Ah, daí teve a minha morte social. As pessoas falavam “tá mexendo com essa coisa de Aids, então tá com o passaporte carimbado”. Quando tive tuberculose em 93, o povo dizia “ih, agora ela vai”. Mas não morri, estou aqui. Muitos que achavam que eu ia morrer, foram antes de mim. Estou aqui lutando pela vida. Não vivo com HIV, vivo com a diabetes e é uma merda. Mas estou vivendo e agradecendo por isso.
Qual momento da carreira guarda com mais carinho?
Lorna Washington – Todos os momentos da minha carreira tiveram muita importância. Quando eu estava em Nova York, fiz show em alguns lugares, quando eu estava em Washington, fiz show em outros tantos lugares, em Miami, Hawaí, tudo isso foi importante. Teve um dia que meu filme estava sendo lançado na Alemanha e eu estava fazendo show em Madureira. Eu estava dando graças a Deus, recebendo cachê, resultado do meu trabalho. Sempre disse que, para mim, tanto faz fazer show no Palácio de Vizcaya ou debaixo de um viaduto. Vou usar as mesmas coisas, vou usar meu melhor perfume, minha melhor roupa, minha melhor maquiagem. E fiz show nos dois lugares, no Palácio de Vizcaya e debaixo do viaduto. Eu valorizo tudo, sempre valorizei, qualquer lugar, qualquer pessoa. Já fiz show para uma plateia que tinha duas pessoas, era um casal, e não cortei nenhuma fala, nada. Eu olhava para aquelas duas pessoas e pensava “eles saíram de casa, vieram só para me ver”. Eu sempre fui artista. Não faço show só por causa do dinheiro, óbvio que dinheiro é bom, mas faço o que fui chamado para fazer. Dou o melhor de mim sempre. E com tanta gente incrível no mundo, resolveram fazer um documentário sobre a minha trajetória. Não me meti em nada em relação ao filme, só pedi que minha enfermeira, Mônica, aparecesse. Ela trabalha comigo há 20 anos. Pedi que ela estivesse no filme para falar um pouco. Gostei muito do resultado. Tinha gente que eu nem sabia que ia participar, não sabia que o Milton Cunha tinha gravado, por exemplo. Foi uma grande surpresa. Agradeço sempre ao resultado final.
Sempre fui preso aos pequenos detalhes. Hoje em dia, principalmente. Se você chegar aqui agora e me chamar para tomar sol, eu vou. Acho maravilhoso. Pegar sol, para mim, é um grande evento. Sair da cama é um grande evento. Hoje estou ainda mais apegado às pequenas coisas. Tudo é maravilhoso, tudo é importante, tudo é parte de uma engrenagem. Agora estou usando cadeira de rodas, mas daqui a pouco volto a andar. Passei 10 meses internado, tive 8 minutos de parada cardíaca, tive escara, feridas nas pernas, então só tenho que agradecer.
O que considera importante para quem quer começar a se montar?
Lorna Washington – Eu acredito que os artistas precisam ler e estudar mais. Antigamente, para ter espaço, ou você cantava ou dançava ou atuava. A gente se inspirava em grandes divas e todas muito singulares, Emilinha Borba, Marlene, Carmen Miranda, Bibi Ferreira. Hoje em dia, apesar da internet facilitando o conhecimento, não sei em quem as pessoas deveriam se inspirar. Poucas leem, poucas procuram embasamento cultural e isso é muito triste. A gente que é viado tem um leão por dia para matar, então tem que ser muito bom no que faz. Tivemos a Parada de São Paulo lotada, mas muita gente ainda é morta. Quando termina a Parada, muita gente ainda leva porrada quando dobra a esquina. Em uma das vezes que apresentei a Parada de Madureira, na época quem era presidente era a Loren Rainha do Buá, que faleceu, chega uma altura da vida que a gente só fala de quem já morreu, mas, enfim, eu apresentei várias Paradas em Madureira e eu tenho uma amiga, que hoje em dia é travesti, mas na época era drag, que me ligou e disse ” Lorna, tentei entrar no shopping e o segurança não deixou”, eu falei “você está me falando isso só agora? Tinha que ter me falado na hora, que a gente ia juntar um grupo e ia até lá”.
Eu sempre fui assim, sempre fui de peitar. Uma vez eu estava no Terreirão do Samba e uma amiga minha, travesti também, foi ao banheiro e o bofe falou que ela não podia entrar, que ela não era mulher. Ah, meu amor, fui lá e falei “desde quando vaso sanitário diferencia pessoas?” e pedi para chamar o gerente. Fiz um escarcéu naquele lugar. Nunca fui boa coisa, sempre fui encrenqueira. Continuo do mesmo jeito. Fico mais calma, faço uma linha mais “ai, coitada de mim”, mas sou uó. Sou deficiente da perna, da língua não. A língua continua afiada.
Mas, enfim, no final, é tudo questão da pessoa querer ser boa no que faz. Hoje em dia, as meninas só pensam em Drag Race, mas lá as meninas cantam, dançam, fazem um monte de coisas. Tudo tem seu tempo, seu momento. Não sou daquelas que vivem do passado. Gosto do presente e pretendo o futuro. E acho que a gente precisa acolher todo mundo que quiser chegar. Eu apareci na contramão de tudo, quando quem fazia show eram as travestis ou as transformistas idênticas à mulher. Eu era toda peluda e ainda usava biquíni. Mas fui persistente. Fui um viado persistente. Falei que ia fazer, que conseguiria. Se eu tivesse um pouco da cabeça que tenho hoje, seria uma RuPaul, uma RuPaul brasileira. Eu acho ótimo essas meninas que estão na mídia, me sinto representado por elas. Não só representado, mas bem representado. Quando você se apresenta em um veículo de comunicação, não é você como indivíduo que está sendo julgado. É o grupo a qual você pertence. Quando vejo pessoas LGBTQIAP+ falando, me sinto muito bem. A Tchaka, a Rita von Hunty, a Silvetty Montilla. E não só as drags. Quando vejo a Erika Hilton falando, só consigo pensar “que maravilha!”.