Estado que mais sofreu com focos de queimadas e de onde chegam as maiores doações para a campanha de Jair Bolsonaro (PL), o Mato Grosso foi palco de uma disputa que corre em grupos públicos no Telegram e do WhatsApp antes mesmo da corrida eleitoral. Nessa versão da história, apesar da oposição declarada da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) ao atual governo, um grupo de indígenas do Xingu, no norte do estado, apoiaria o capitão à reeleição.

Em agosto passado, um vídeo ganhou as redes como “Indiociata”, em que dois indígenas seguram uma faixa com a bandeira do Brasil e a foto de Bolsonaro. Apenas na página do filho do presidente e vereador carioca Carlos Bolsonaro (Republicanos), o 02, foram mais de 328 mil visualizações no Twitter até o fechamento desta reportagem. Não demorou para a ATIX (Associação Terra Indígena do Xingu) publicar uma nota de repúdio.

O post de Carlos Bolsonaro (Republicanos) no Twitter e, à direita, a reação de apoiadores em grupos de WhatsApp

“Se aproveitaram de forma desonesta do momento de celebração do ritual sagrado do Kuarup para induzir alguns indígenas a expor imagens e cartazes com intenção de veicular os povos do Território Indígena do Xingu como simpatizantes do atual presidente do Brasil”, afirma a nota.

O cacique Takumã Kuikuro, membro da aldeia indígena Kuikuro, uma das que tinha representantes naquele ritual Kuarup, afirmou ao G1 que a cerimônia aconteceu nos dias 20 e 21 de agosto de 2022 na Aldeia Mehinaku, no Alto Xingu, e homenageava lideranças indígenas mortas. Segundo ele, os dois indígenas que seguraram a faixa pró-Bolsonaro se aproveitaram do momento para usar o nome dos povos presentes. “Tem povo kuikuro, aweti, mehinako, kalapalo, nafuka, matipu, que não apoiam esse governo do Bolsonaro”, disse.

Uma das homenageadas na ocasião era a mãe da ativista indígena Watatakalu Yawalapiti, que foi uma pajé de seu povo e morreu de Covid-19. “Quero lembrar aqui que minha mãe poderia estar viva se o [presidente Jair] Bolsonaro e o Dsei [Distrito Sanitário Especial Indígena] Xingu não tivessem negado a vacina para ela. Eu vi esse ato de carregar o cartaz do Bolsonaro como comemorar a morte da minha mãe”, afirmou a ativista em mensagem enviada ao G1. “Deixei de lado meu ativismo para cuidar do Kuarup da minha mãe junto com os meus tios e minha irmã. Nunca desrespeitei o Kuarup dos outros, nunca minha família desrespeitou o Kuarup dos outros.”

Mas essa não é a única história por trás da “Indiociata”.

O Parque Indígena do Xingu, onde o vídeo foi gravado, foi o terceiro território que mais queimou no ranking de focos de incêndio em Terras Indígenas (TIs) e parques nacionais e estaduais de preservação no Mato Grosso, segundo o Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais). De janeiro a agosto de 2022, foram registrados 258 focos.

Nesse mesmo período, o Mato Grosso foi o estado que mais sofreu com focos de queimadas: foram 16.458, o que representa 19,5% dos incêndios no Brasil, segundo o Inpe. Entre janeiro e julho, os dez municípios brasileiros que registraram o maior número de queimadas eram mato-grossenses, aponta reportagem de O Globo com dados do Inpe. E o bioma Amazônia registrou mais da metade (54%) dos focos de queimadas no país (46.022), de acordo com o instituto.

COMO FAZEMOS O MONITORAMENTO:

O projeto Mentira Tem Preço, realizado desde 2021 pelo InfoAmazonia e pela produtora FALA, monitora e investiga desinformação socioambiental. Nas eleições de 2022, checamos diariamente os discursos no horário eleitoral de todos os candidatos a governador na Amazônia Legal. Também monitoramos, a partir de palavras-chave relacionadas a justiça social e meio ambiente, desinformação sobre a Amazônia nas redes sociais, em grupos públicos de aplicativos de mensagem e em plataformas.

Nos últimos 11 anos, 500 mil dos 2,5 milhões de hectares de vegetação nativa perdidos no Mato Grosso foram registrados em fazendas de soja, e 92% desse total foi suprimido de forma ilegal, sem autorização de órgãos ambientais, relata um estudo sobre soja e desmatamento ilegal no estado publicado pelo Instituto Centro de Vida (ICV).

O avanço do agronegócio no estado aumenta a pressão pela ocupação de terras — e, consequentemente, sobre os territórios indígenas, alerta o presidente da Atix, Ianukula Kaiabi Suiá. Ele explica que há uma pressão de grupos econômicos e do governo federal para que os indígenas abandonem a produção sustentável para aceitar a plantação de monocultura dentro do território. E que a oferta de material e maquinário, como uma maneira de aliciar indígenas, “ficou mais forte de uns quatro anos pra cá”.

Nós percebemos que, camufladamente, o pessoal do agro e do governo tem tentado convencer os indígenas de que a produção sustentável e a familiar, dentro das terras indígenas, não dá renda. Às vezes, eles pressionam para que a gente aceite as políticas de monocultura dentro das nossas terras. E aí vêm todas as promessas de equipamentos

IANUKULA KAIABI SUIÁ, PRESIDENTE DA ATIX

E continua: “o nosso entendimento amplo é de que a gente tem condições de produzir de forma sustentável, conforme o nosso modo de vida, dentro da cultura indígena. A gente acredita que uma boa parte das populações indígenas não concorda com esse modelo proposto pelo governo atual.”

O presidente da Atix completa que as comunidades indígenas têm consciência de que estão em uma terra demarcada e homologada e dos direitos que, apesar de assegurados, vêm sendo negligenciados. Ianukula Kaiabi Suiá acredita que a população do Xingu pode viver da produção sustentável, mas que precisa de políticas públicas que viabilizem a segurança territorial e alimentar.

“O que a gente precisa, neste momento, é de um investimento dentro das terras indígenas, no sentido de apoiar a produção sustentável. Deve existir uma política que dê mais atenção a essas alternativas econômicas, que respeite a floresta em pé, que respeite a sustentabilidade e todo o modo de vida das populações indígenas”, conclui Suiá.

Essa reportagem faz parte do projeto Mentira Tem Preço – especial de eleições, realizado por InfoAmazonia em parceria com a produtora Fala. A iniciativa é parte do Consórcio de Organizações da Sociedade Civil, Agências de Checagem e de Jornalismo Independente para o Combate à Desinformação Socioambiental. Também integram a iniciativa o Observatório do Clima (Fakebook), O Eco, A Pública, Repórter Brasil e Aos Fatos.

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