por Yasmin Henrique

A COP deixou de ser uma conferência exclusivamente climática e para se tornar um espaço de encontro entre lideranças religiosas, cientistas e movimentos sociais em torno de uma ética planetária diante da emergência ambiental. Nesse cenário, a ecoteologia ganha força no meio acadêmico e nas comunidades de fé como um campo que busca responder teologicamente ao colapso ecológico, reposicionando a humanidade como parte — e não centro — da Terra. Longe de ocupar um lugar marginal, essa abordagem se consolida como chave para compreender como diferentes tradições religiosas respondem ou resistem à crise climática.

Enquanto a teologia clássica reflete sobre Deus, existência e sentido a partir da razão iluminada pela fé, a ecoteologia recoloca essas questões no horizonte da vida planetária, reconhecendo que preservar a Terra é hoje parte indispensável da espiritualidade contemporânea. Para autores como Jürgen Moltmann, é necessário “redescobrir Deus na criação” e superar interpretações que legitimam o domínio humano sobre o planeta. Assim, a ecoteologia não substitui a teologia tradicional, mas reorganiza seus eixos — criação, antropologia, ética e escatologia — a partir da compreensão de que somos filhos da Terra, feitos do mesmo barro que todas as criaturas.

Teologia verde

O campo reúne ecologias ambiental, mental, social e integral, aproximando espiritualidade e sustentabilidade. Defende rever nossa relação com todos os elementos da vida — da água e do solo aos microorganismos e às comunidades humanas — entendidos como partes interdependentes de um mesmo sistema.

Seu método, de base relacional e inspirado por Moltmann, substitui a lógica do controle pela participação e combina tradição, ciência, saberes ancestrais e linguagem simbólica. A ecoteologia também se apoia nas ciências ambientais, dialogando com áreas como climatologia e ecologia de sistemas.

Exerce três funções: crítica (contra consumismo e antropocentrismo), justificadora (reinterpreta o papel cristão na relação com a natureza) e sapiencial (busca sabedoria para o “bem viver”). Seu princípio exige mudanças institucionais e pastorais para integrar espiritualidade, prática e conhecimento na construção da “casa comum”.

A agenda ecoteológica atual se organiza em cinco eixos:

  • Incorporar ciências ambientais e práticas socioambientais;
  • Reinterpretar a fé em chave sustentável;
  • Desenvolver espiritualidade conectada e celebrativa;
  • Dialogar com Teologia da Libertação, teologias feministas, indígenas e étnicas;
  • Estimular atitudes pessoais, ações coletivas e reformas institucionais que mantenham a Terra habitável.

Como tradições religiosas tratam a crise ecológica

  • Catolicismo — A tradição católica entende a criação como dom divino e orienta que o ser humano “lavre e guarde” a Terra (Gn 2:15). A partir de 2015, com a encíclica Laudato si’, o Vaticano consolidou o conceito de Ecologia Integral, que articula justiça social e cuidado ambiental, tratando a crise ecológica como um pecado coletivo. Em 2023, a exortação Laudate Deum reforçou críticas ao modelo econômico vigente e ao negacionismo climático.
  • Evangélicos — O campo evangélico é marcado por grande diversidade. Setores conservadores mantêm interpretações centradas no domínio humano sobre a criação, enquanto cresce a teologia da mordomia cristã, que compreende o cuidado ambiental como dever moral. Há ações práticas de educação ambiental e preservação local, embora ainda falte articulação em escala nacional.
  • Tradições indígenas — Para os povos originários, a natureza é viva, sagrada e dotada de agência espiritual. Rios, florestas, montanhas e animais compõem um sistema interdependente. O conhecimento tradicional integra agricultura, conservação e equilíbrio ecológico, constituindo uma ecoteologia ancestral vivida, mais do que conceituada.
  • Religiões afro-brasileiras — No Candomblé e na Umbanda, a natureza é fundamento espiritual: os orixás representam forças da água, da mata, das pedras e dos ventos. Sem natureza, não há axé. Terreiros funcionam como espaços de preservação e resistência frente ao racismo ambiental.
  • Hinduísmo, Wicca, Budismo e Espiritismo — Essas tradições também compreendem a natureza como expressão do sagrado. O Hinduísmo enfatiza a não violência (ahimsa); a Wicca celebra os ciclos naturais; o Budismo destaca interdependência e compaixão; e o Espiritismo relaciona evolução moral ao cuidado com o planeta.

Negacionismo e resistência

A tese de doutorado de Renan William dos Santos, defendida na USP e premiada como a melhor da Grande Área de Ciências Humanas em 2024, examina como as lideranças católicas e evangélicas passaram a incorporar a agenda ambiental desde os anos 1970 no Brasil. O estudo aponta um consenso geral sobre a importância da preservação, mas mostra que essa mensagem é sempre reinterpretada dentro de moldes morais — em torno de noções como pecado, responsabilidade e cuidado. 

Um estudo de Kane & Perry, publicado em 2024, analisou como crenças sobre o controle divino da Terra moldam percepções sobre a crise climática. A pesquisa — baseada em um levantamento nos EUA com 5.321 participantes — mostrou que concordar com a ideia de que “Deus não permitiria que humanos destruíssem a Terra” reduz a preocupação climática em 6%, diminui em 7,4% a probabilidade de classificar o clima como uma “crise”, enfraquece em 10% a crença na origem humana do aquecimento global e reduz em 2,3% o apoio a políticas ambientais. Os autores concluem que esse enquadramento teológico diminui o engajamento ambiental.

A resistência religiosa também é organizada. Em 1992, o evento “Vozes Alternativas” — promovido pela Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) como reação à Eco-92 — reuniu cientistas céticos e lideranças conservadoras, formando redes de negacionismo climático. No Congresso, a Frente Parlamentar Evangélica — com 132 deputados e 14 senadores — influencia diretamente pautas socioambientais; parte de suas lideranças adota posições conservadoras e, em alguns casos, antidemocráticas, dificultando políticas robustas de proteção ambiental.Ao mesmo tempo, iniciativas de diálogo avançam. O projeto Fé no Clima, do Instituto de Estudos da Religião (ISER), articula líderes religiosos, povos indígenas e cientistas pela justiça climática e já impulsionou pautas como os “direitos da natureza”, incorporadas às constituições de Equador, Colômbia e Bolívia. O encontro organizado pelo projeto em 13 de agosto, no Memorial dos Povos Indígenas, simbolizou esse movimento: um “mutirão religioso pela Terra”, com cantos Guarani, rituais afro-brasileiros e representantes judeus, muçulmanos e cristãos discutindo água, território e justiça. Com a presença de Ana Toni, diretora executiva da COP30, e da ministra Marina Silva, o evento reforçou o sentido de urgência após 33 anos de negociações climáticas – desde a Eco-92.