Por Hyader Epaminondas

Em meio a um cinema brasileiro frequentemente movido pela urgência, pela necessidade de dizer, denunciar e resistir, Rafaela Camelo segue na contramão. Seu filme “A Natureza das Coisas Invisíveis” escolhe o silêncio, o intervalo e o gesto contido como caminhos para enxergar o mundo.

A diretora transforma o cotidiano em matéria sensível, filmando o tempo com delicadeza, como quem observa o nascer de uma emoção. Há algo de profundamente espiritual em sua maneira de registrar os corpos e os espaços: o enquadramento nunca é apenas técnico, mas uma forma de cuidado, de respeito por aquilo que é invisível à pressa.

Camelo dá ênfase às mães que precisam ser um mundo inteiro para suas filhas, mulheres que carregam em si o peso e a delicadeza de sustentar o universo doméstico e emocional que as cerca. São mães que, entre o trabalho, o cansaço e o afeto, tornam-se o eixo invisível que mantém tudo em movimento, um sol particular em torno do qual a infância orbita.

Há algo de profundamente poético e doloroso nessa condição, porque ser um mundo é também nunca poder se ausentar dele. As responsabilidades se multiplicam, os espaços se confundem, e muitas vezes as crianças aprendem a reconhecer o local de trabalho das mães com mais intimidade do que as próprias mães conseguem habitá-lo. O trabalho deixa de ser apenas um lugar fora de casa e passa a integrar o imaginário infantil, como uma extensão do corpo materno, uma paisagem onde o amor e o dever coexistem.

Essa relação é captada por Camelo a partir de um ângulo fechado, que acompanha as personagens com uma proximidade quase tátil, restringindo o campo de visão à perspectiva das crianças. É como se o filme inteiro respirasse com seus olhos, vendo o mundo de baixo, limitado, mas cheio de descobertas e mistérios.

Cada enquadramento revela o tamanho que o amor materno assume dentro de um espaço pequeno e o quanto, para essas mães, amar significa também resistir. O olhar da diretora não se impõe, ele se abaixa. E, nessa escolha formal, há uma ética e uma ternura que ampliam a compreensão do que é crescer e, sobretudo, do que é cuidar em meio ao exaustivo ato de existir.

Vencedor do Prêmio da Crítica na Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, o longa revela uma diretora em pleno experimentando sua linguagem, capaz de transformar o cotidiano em rito e o olhar infantil em reflexão sobre o que escapa à matéria. É um filme que se impõe pela leveza, que emociona não pelo drama, mas pela atenção. O resultado é um filme que surpreende pela delicadeza, pela coragem de desacelerar o olhar e permitir que o tempo se dilate até revelar o invisível.

O universo das Coisas Visíveis

A história é pequena, mas dentro dela cabe o universo. Glória, uma menina de dez anos, passa as férias no hospital onde a mãe trabalha como enfermeira. Entre o chiado das máquinas e o zumbido dos ventiladores, ela conhece Sofia. O que nasce dessa amizade não é só ternura, mas também o vislumbre da perda, um aprendizado que o filme trata não como tragédia, mas como rito de passagem.

Camelo captura o verão goiano como um organismo vivo. O calor vibra, o ar parece pesado, e a luz se infiltra nas superfícies como se quisesse tocar o interior das coisas naquela casa clássica de vó. Há algo de mineral na textura do filme: poeira, suor, claridade, como se cada plano fosse feito da própria substância do tempo. O cinema aqui é corpo: sente, transpira, respira. E a câmera, paciente, observa a infância não como pureza, mas como estado de percepção, esse momento em que o mundo ainda se explica por sinais.

O título é também o seu método. Camelo filma o invisível. Não o sobrenatural, mas o que se dissolve nas margens da experiência: o som de uma respiração contida, a pausa antes de uma lágrima, o gesto que quase acontece e, quando o surreal acontece, ele acontece com uma poesia tangível. O invisível, em seu cinema, não é ausência, é presença exaltada, uma força que se manifesta nas frestas, nos silêncios, nos espaços entre uma palavra e outra.

A relação entre Glória e Sofia é uma constelação de pequenos movimentos. Elas orbitam uma à outra como duas estrelas em rota de colisão lenta. A amizade nasce na curiosidade e amadurece na consciência da despedida. Camelo filma essa aproximação como quem observa um eclipse: o momento em que duas presenças se sobrepõem e o mundo muda de cor. Sua câmera não busca a beleza, mas o mistério. Em um tempo em que as imagens gritam, ela prefere escutar. Quando chega o fim, não há resposta, nem catarse. O que permanece é o eco: o verão que se dissolve no ar, o som de uma lembrança que insiste em ficar.

Rafaela Camelo faz um cinema que se sustenta na atenção e, em “A Natureza das Coisas Invisíveis”, ela filma o instante em que o visível se desfaz e o invisível ganha forma. Seu filme é como o respiro antes da chuva, o brilho que antecede o adeus. Um lembrete de que, às vezes, ver é apenas outra maneira de sentir.