Por Hyader Epaminondas

Como adaptação de Stephen King, já era esperado que o drama fosse central, imerso em paranoia e dores humanas. Mas o filme não se limita a esse enquadramento angustiante, e sim a uma narrativa aparentemente simples de sobrevivência. Francis Lawrence constrói uma reflexão incômoda sobre poder, sociedade e espetáculo, e ainda desenvolve um fluxo narrativo tão exaustivo em termos de ambientação que você sente cada quilômetro percorrido pelos personagens.

A trama nasce de uma ferida histórica: os jovens são obrigados a pagar pelos erros de gerações anteriores em um mundo devastado pela guerra e mergulhado em recessão. É nesse cenário que surge a Caminhada, um evento performático em que um jovem de cada estado marcha até a exaustão, sem descanso, até que reste apenas um. O vencedor recebe uma fortuna e tem um desejo atendido pelo Estado. O suposto voluntarismo, através de um sorteio de loterias que os leva à competição, não passa de manipulação, uma exaltação patriótica usada como propaganda.

Não é coincidência que Lawrence, também responsável por parte da saga Jogos Vorazes, retome aqui o tema da espetacularização da violência. Se a indústria audiovisual já testa os limites éticos ao transformar sofrimento em consumo, A Longa Marcha leva a lógica ao extremo. O espetáculo só existe porque a morte é transformada em entretenimento coletivo, com cidadãos acomodados diante da tela assistindo ao colapso físico e emocional dos competidores.

Essa engrenagem revela uma crítica feroz à meritocracia. A competição é apresentada como metáfora de esforço: caminhar sem parar, resistir ao cansaço, suportar a dor, e, ao fim, haverá recompensa. Mas a lógica é falsa, porque a linha de chegada só oferece destruição. O suposto prêmio não muda a vida dos demais, nem altera a estrutura do mundo em crise. A marcha, portanto, não é sobre vitória, mas sobre manutenção de um sistema que sobrevive alimentando a esperança de que vale a pena sofrer.

E essa leitura se conecta de maneira direta ao nosso presente. Hoje, em meio a guerras e conflitos reais, vemos líderes vivendo em luxo enquanto populações inteiras enfrentam fome, miséria e deslocamento forçado. Conflitos que poderiam ser resolvidos pelo diálogo diplomático seguem cobrando vidas apenas para alimentar interesses políticos e econômicos.

Ao mesmo tempo, a sociedade é esmagada por impostos que servem mais para sustentar uma máquina pública inflada por privilégios e salários dignos de deuses para poucos do que para garantir saúde e educação de qualidade para todos, enquanto os funcionários públicos do baixo clero sofrem com defasagem salarial, risco de terceirização e falta de perspectiva de futuro.

No Brasil, isso se manifesta em iniciativas como a chamada PEC da Blindagem, que dificulta a responsabilização de parlamentares, e nos debates sobre a anistia para atos antidemocráticos, apresentados como tentativas de “pacificação”, mas que ecoam a lógica da impunidade já vivida na Lei da Anistia de 1979. Em ambos os casos, a mensagem é clara: os que detêm o poder criam regras que os protegem, enquanto os mais vulneráveis continuam pagando o preço com sangue.

Esses episódios recentes de corrupção e medidas explícitas que relativizam conceitos de justiça reforçam o quanto esse ciclo é perverso. O filme ressoa porque sua metáfora não é futurista: é a reprodução alegórica de um presente que já vivemos. Em um país onde a educação crítica é desvalorizada e até perseguida, a manutenção da ignorância se torna ferramenta de poder. A ordem é simples e brutal: não questione, mantenha o passo, não saia da linha.

A brutalidade escópica da subjetividade em marcha

No início, o filme força o público a se importar com aquelas vítimas que avançam em direção à própria morte utilizando imagens de violência explícita na execução. Mas o que se desfaz ali não é apenas a carne: são sonhos interrompidos, futuros arrancados antes de nascerem.

Da metade em diante, as mortes deixam de ocupar o centro da cena e passam a ocupar um lugar desfocado. O silêncio, os olhares e as reações dos sobreviventes já carregam dor o bastante. É como se o sistema, ao apagar cada jovem, também apagasse lentamente a memória deles, transformando vidas em números que se dissolvem diante da multidão. O que antes chocava pela brutalidade agora sufoca pela ausência, pelo silêncio.

O contraste entre a natureza e a estrada reforça a sensação de prisão. Lawrence filma a vitalidade dos cenários abertos em oposição ao asfalto seco que guia os competidores. De um lado, a promessa de vida, de outro, um corredor de tortura e morte. Essa separação marca a perversidade de um sistema que transforma corpos em espetáculo e sofrimento em propaganda.

Embora Peter e Ray recebam maior destaque, o filme não os reduz a indivíduos isolados. O elenco secundário atua com protagonismo em seus respectivos atos, sempre intercalando uns aos outros para acrescentar camadas a essa história de forma ultra-humanizada. Eles são parte de uma coletividade condenada, vítimas de uma engrenagem de opressão que não permite futuro. Cada competidor carrega sonhos, desejos e ilusões e, ironicamente, esses mesmos sonhos se convertem em ruína. A caminhada é um microcosmo da humanidade: todos partem com esperanças, todos terminam diante da morte.

No livro de Stephen King, o final é mais subjetivo e poético, já na adaptação de Lawrence permanece o simbolismo cruel, um lembrete de que a vida é arbitrária e injusta. Mas a mensagem é clara: não há recompensa real para quem se sacrifica em nome de um sistema apodrecido. A meritocracia é apenas uma máscara para a desigualdade.

O que A Longa Marcha denuncia é um ciclo eterno de manipulação. O poder se mantém oferecendo migalhas de promessa e convencendo os mais frágeis de que seus inimigos são os outros que também sofrem. A verdadeira estrutura de exploração segue intocada, escondida atrás da competição e da falsa narrativa de escolha.

A caminhada se torna uma metáfora universal sobre como a vida é seguir em frente, mesmo em meio à dor, mesmo tropeçando. Caminhamos, conhecemos pessoas, nos apegamos e, no fim, perdemos todas elas. O destino final é sempre a morte, e por isso só resta valorizar os pequenos momentos e tentar preservar a dignidade diante de um sistema que insiste em roubá-la.

A Longa Marcha expõe com brutal clareza a essência de qualquer regime que se sustenta na exploração, pouco importando o nome que adote: andar em linha reta, não diminuir o passo, não sair do caminho. Uma regra simples que mantém todos sob controle, enquanto os que assistem de longe acumulam luxo e poder, os mesmos que transformam guerras em negócio, impostos em fardo e o futuro de uma geração em cinzas.