Autoria coletiva CulinAfro

No Brasil, é quase impossível nunca ter ouvido falar da “merenda” escolar, a alimentação oferecida nas escolas públicas do Brasil vai muito além de uma simples refeição! Por trás desse nome popular, está o Programa Nacional de Alimentação Escolar, ou PNAE. Reconhecido internacionalmente, ele serve de inspiração para diversos países que buscam implantar programas sociais semelhantes.

Com a evolução da política de alimentação escolar, cerca de 40 milhões de estudantes de todo o país são beneficiados diariamente. E o melhor: ninguém fica de fora! Isso porque a Lei 11.947/2009 determina uma alimentação adequada e de qualidade para crianças, jovens e adultos, incluindo estudantes de povos e comunidades tradicionais como quilombolas, indígenas, caiçaras, ribeirinhos, entre outros. Mas garantir uma comida culturalmente apropriada, saborosa, diversa e saudável não é tarefa fácil!

Por isso, o Guia Alimentar para a População Brasileira se demonstra fundamental nessa construção, pois é grande condutor de políticas públicas. Quando alinhado às suas diretrizes, a proteção de ambientes alimentares, como o ambiente escolar, contribui para a formação de hábitos alimentares mais saudáveis. A proposta é simples mas poderosa: quanto mais natural, melhor! E para ajudar nas escolhas mais saudáveis o Guia divide os alimentos em quatro categorias:alimentos in natura ou minimamente processados; óleos, gorduras, sal e açúcar; alimentos processados; e alimentos ultraprocessados.

A boa notícia é que os alimentos mais recomendados – como arroz, feijão, frutas, legumes, verduras, carnes e pescados – já fazem parte do cotidiano de boa parcela da população brasileira, seja no ambiente familiar ou escolar. São os alimentos in natura e minimamente processados que devem ser a base dessa alimentação, pois oferecem todos os nutrientes essenciais para o corpo e para o rendimento escolar.

Nesse casamento do Guia com o Programa Nacional de Alimentação Escolar, surgem recomendações e marcos normativos que vão tratar sobre a limitação da presença de alimentos processados e ultraprocessados nas escolas, visando a promoção de uma alimentação adequada e saudável, da saúde e do crescimento dos educandos. Assim, da aplicação dos recursos financeiros destinados pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para a alimentação escolar, no mínimo, 75% devem ser destinados à aquisição de alimentos in natura ou minimamente processados e, no máximo, 20% podem ser destinados à aquisição de alimentos processados e ultraprocessados.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar também cuida da qualidade do que é vendido nas escolas. Uma de suas medidas para proteger os alunos e o ambiente escolar é a recomendação para que produtos como balas, salgadinhos, refrigerantes – considerados alimentos ultraprocessados pelo Guia Alimentar para a População Brasileira – não sejam comercializados nas cantinas escolares. Ao termos um ambiente sem a presença de ultraprocessados, contribuímos com a formação de hábitos alimentares saudáveis desde cedo.

Como tornar isso possível? Bem, muitos desafios ainda precisam ser superados. O recorrente aumento no preço dos alimentos, especialmente dos in natura ou minimamente processados, ameaça comprometer a alimentação escolar limitando o poder de compra caso não haja ajuste proporcional dos valores per capita repassados para o Programa Nacional de Alimentação Escolar pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, do Ministério da Educação. Isso significa menos comida no prato dos estudantes, elevando o risco de Insegurança Alimentar e Nutricional já que muitos deles já partem de uma realidade de insegurança e, por muitas vezes, têm a alimentação escolar como única ou principal refeição do dia.

Esse cenário nos evidencia sintomas da Sindemia Global – no relatório da comissão The Lancet – que nada mais é que a interação entre as crises globais de obesidade, desnutrição e mudanças climáticas, que apontam a emergência da reconstituição dos sistemas agroalimentares.

Fran Paula de Castro, em seu livro Racismo e Sistemas Agroalimentares, expressa que a dominação de modelos agrícolas baseados na exploração invasiva e desenfreada de terras e bens naturais fragiliza a contribuição histórica de povos e comunidades tradicionais que têm papel chave na manutenção da biodiversidade e, como consequência, do equilíbrio climático.

Para Fran, produzir alimentos sustentáveis e saudáveis no Brasil está diretamente ligado ao direito à terra e ao território. Especialmente num contexto onde os modelos agroalimentares dominantes, voltados exclusivamente para interesses econômicos, produzem alimentos contaminados por agrotóxicos, controlados por grandes corporações capitalistas.

A valorização dos modos de vida dos povos do campo, originários e tradicionais é essencial para assegurar sistemas agroalimentares sustentáveis e livres de veneno. Além disso, fortalece o papel estratégico da agricultura familiar na alimentação escolar, promovendo o acesso a alimentos seguros e de qualidade, como orienta o Guia Alimentar.

Nesse sentido, a Lei nº 11.947 exige desde 2009 que no mínimo 30% dos recursos destinados à alimentação escolar sejam utilizados na compra de alimentos da agricultura familiar, respeitando a cultura alimentar regional e contribuindo para o desenvolvimento dos povos e comunidades tradicionais.

Com a compra de alimentos diretamente da agricultura familiar e de agricultoras e agricultores familiares de povos indígenas, quilombolas, povos e comunidades tradicionais se garante um prato cheio de comida de verdade, que tem história, cheiro, sabor.. que remete a cultura alimentar daquela comunidade, cidade ou região. É uma movimentação que contribui para aproximação dos produtores com os consumidores, estimulando a economia local e a construção de identidades alimentares dos escolares.

“Programa Escolar CulinAfro” como promotor da alimentação saudável na escola

Em uma escola localizada em território quilombola no norte fluminense, uma iniciativa educativa inovadora tem transformado a experiência escolar. Trata-se do Programa Escolar CulinAfro, desenvolvido pela equipe gestora e docente, em parceria com o grupo de pesquisa e extensão CulinAfro, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). As atividades do programa foram documentadas no livro Tempero de Quilombo na Escola e divulgadas no perfil do grupo no Instagram (@CulinAfro_ufrj). 

O programa foi além da sala de aula tradicional, promovendo um mergulho cultural e gastronômico. As ações incluíram contação de histórias, leituras e a criação de trabalhos artísticos inspirados em receitas da culinária quilombola. Um dos pontos altos foi a implantação de uma cozinha pedagógica, um espaço onde saberes ancestrais ganharam vida, com a participação ativa das famílias e integração com os conteúdos escolares. 

A experiência também fortaleceu um processo participativo de Educação Alimentar e Nutricional, alinhado às diretrizes do Guia Alimentar para a População Brasileira. Nesse contexto, os alunos e a comunidade foram incentivados a valorizar a cultura alimentar quilombola, que prioriza o uso de alimentos in natura ou minimamente processados. 

Com essa abordagem, a CulinAfro mostrou como a educação pode ser um instrumento poderoso para preservar e disseminar a cultura alimentar afrobrasileira, fortalecendo os laços comunitários e promovendo a inclusão de saberes tradicionais na formação das novas gerações. 

SOBRE A CULINAFRO

Autoras Pesquisadoras da CulinAfro: Ainá Innocencio da Silva Gomes, Camila Moreira Fonseca, Danielle Theodoro Canicio, Debora Silva do Nascimento Lima, Luana de Lima Cunha, Maria Lorrane Lopes Conde e Rute Ramos da Silva Costa. 

A CulinAfro é um grupo de extensão e pesquisa CNPq do Centro Multidisciplinar da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em Macaé (RJ), criado em 2014 pela Profª Dr. Rute Costa. Hoje o grupo atua nas seguintes linhas de pesquisa: Educação Alimentar e Nutricional em Afroperspectiva; Alimentação Escolar Quilombola e Culinárias Africanas.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Lei nº 11.947, de 16 de junho de 2009. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar e do Programa Dinheiro Direto na Escola aos alunos da educação básica; altera as Leis nº 10.880, de 9 de junho de 2004, nº 11.273, de 6 de fevereiro de 2006; revoga dispositivos da Medida Provisória nº 2.178-36, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 17 jun. 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/lei/l11947.htm

BRASIL. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Resolução nº 6, de 8 de maio de 2020. Dispõe sobre o atendimento da alimentação escolar aos alunos da educação básica no âmbito do Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 8 maio de 2020, p. 41. Disponível em: https://www.fnde.gov.br/. Acesso em: 23 jan. 2025. 

BRASIL. Ministério da Saúde. Guia alimentar para a população brasileira. 2. ed. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2014. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2e d.pdf 

CASTRO, Franciléia Paula de. Racismo e sistemas agroalimentares: perspectivas para uma transformação justa. Salvador: CESE, 2021. Disponível em: https://www.cese.org.br/cese-lanca-publicacao-sobre-racismo-ambiental-e-sistemas agroalimentares-no-cerrado/ 

COSTA, Rute Ramos da Silva; CASTRO, Maria Luíza Lima de; FONSECA, Alexandre Brasil (orgs.). Tempero de Quilombo na Escola: experiências de extensão do projeto CulinAfro (UFRJ-Macaé). Niterói: NEAB-UFF, 2019. Disponível em: https://neab.uff.br/wp-content/uploads/sites/416/2021/10/CulinAfro_Livro-versao-final .pdf SWINBURN, B. A. et al. The global syndemic of obesity, undernutrition, and climate change: The Lancet Commission report. Lancet 393, 2019. Disponível em: https://www.thelancet.com/commissions/global-syndemic