Por Ben Hur Nogueira

O processo de construção histórica do imaginário brasileiro sobre a representatividade afro-brasileira, sobretudo no que diz respeito à negritude, quase sempre foi remetido a estereótipos escravocratas, de influência direta do imaginário populacional. Isso se deu na cultura de forma geral. Na literatura popular, através de personagens negros, que atuavam de maneira subserviente às pessoas brancas, em papéis laboriosos. Nas marchinhas populares de carnaval da primeira metade do século passado, consumidas majoritariamente por elites brancas, a exemplo de “Boneca de piche”, de Ary Barroso. A canção em questão, cria um imaginário popular influenciado por uma época com heranças escravagistas e estabelece facilmente a construção da visão social e pública sobre o comportamento da população afro-brasileira nas suas letras.

No cinema brasileiro, personagens negros quase sempre eram vistos de maneira burlesca, cômica ou marginalizada, perpetuando a narrativa social de pessoas negras em posições de subserviência.

Contudo, estamos acompanhando um processo atual de quebra das correntes imperialistas e escravocratas, direcionando o foco para nossas narrativas, nossas histórias, reparando o apagamento histórico perpetuado por estereótipos que durante tanto tempo nos cercaram de maneira sufocante. Esta é a hora e a vez do cinema negro brasileiro.

Desde os anos 1950, em que o cinema brasileiro passou a ter um caráter quintessencial popular com a criação das chanchadas, passamos a ver a manutenção de estigmas escravocratas ante protagonistas negros. Um dos maiores exemplos desta época é o ator Grande Otelo, que, por vários filmes, teve sua seriedade posta em posição de comicidade quase que desumana, sendo, por vezes, alvo de piadas de cunho preconceituoso por parte das produções que participou.

Outro ator pós-chanchada que sofreu muito com estigmas sobre a sua persona foi Antonio Carlos Gomes, o Mussum. Apesar de ser um sambista renomado pelo grupo Os Originais do Samba, era rotineiramente subjugado em piadas sobre sua cor e personalidade, principalmente nos filmes dos Trapalhões.

Recentemente, ambos artistas ganharam filmes biográficos, com o relato de suas vidas e trajetórias artísticas. O mais satisfatório foi poder compreender que ambos filmes não lidam com a trajetória destas entidades culturais brasileiras de maneira cômica como a mídia sempre manipulou, mas de maneira sensível, mostrando a vivência dura em um país pós-abolição, extremamente racista, em que a população negra tentava sobreviver às margens da sociedade.

“Mussum, O Filmis” (2023), dirigido por Silvio Guindane, pode ser facilmente categorizado como um marco revolucionário estético e comercial no que se refere a biografias cinematográficas brasileiras. Isso porque, pela primeira vez na história moderna do cinema brasileiro pós-retomada, tivemos uma narrativa biográfica sobre uma personalidade negra em que tanto o tempo de tela quanto o caráter narrativo da película prioriza a valorização do negro de maneira introspectiva.

O documentário “Othelo, O Grande”, que tive o privilégio de assistir durante a 19ª edição da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto, e que chega agora aos cinemas, traz de maneira bíblica, uma epopeia pessoal do Grande Otelo, contada pelo próprio. Assim como Moisés no Pentateuco, temos Grande Otelo narrando sua trajetória, dificuldades, superações e adaptações, sempre com um olhar lúcido e crítico sobre si e sobre o cenário social no qual estava inserido.

“Diálogos com Ruth de Souza”, de Juliana Vicente, exibido na 18ª edição da mesma Mostra, pode ser categorizado como o filme-irmão de “Othelo, O Grande”, em que temos a priorização da narrativa introspectiva da própria atriz Ruth de Souza sobre sua trajetória, ou seja, temos a versão do colonizado, não a do colonizador.

Aliás, a visão predominante do colonizador é justamente a responsável pela perpetuação de processos de segregação e racismo, de forma que filmes como os citados ressaltam o protagonismo negro, buscando reparar o apagamento histórico do movimento negro nas telas e também atrás das telas.

É o caso do documentário “Black Rio! Black Power!”, do diretor Emilio Domingos. O filme, que também chega aos cinemas no dia 5 de setembro, acompanha a construção da autoestima periférica e a exaltação da negritude através da cultura black dos anos 1970, mostrando como a juventude afro-periférica encontrou força no movimento black, que influenciou a autoaceitação cultural de jovens negros. O diretor reconstitui um pedaço da história através de depoimentos de personagens importantes do movimento, a exemplo de Dom Filó, líder da Soul Grand Prix. O longa ressalta ainda a escassez de documentos da época, evidenciando o já mencionado processo de apagamento histórico cultural do movimento negro.

Não distante, também temos que dar enfoque para o cinema oriundo de Contagem, Minas Gerais. Desde 2009, a produtora Filmes de Plástico lida com a priorização de um cinema regional, autoral e respeitoso ante a representatividade afro-brasileira em suas telas. Através da filmografia autoral, a Filmes de Plástico vem se consolidando como uma das maiores potências do cinema negro mundial ao desenvolver um paralelo entre o público e a mensagem proposta, com personagens relacionáveis ao público.

“Temporada”, de André Novais, e “Marte Um”, de Gabriel Martins, são grandes exemplos de filmes lidam com o cotidiano periférico de uma maneira singular, em que arquétipos de criminalidade e violência são ignorados e a famigerada jornada da persona de cada personagem é maximizada individualmente.

De fato, a construção da visão periférica brasileira, sobretudo a construção da visão afro-brasileira, passa por uma reformulação revolucionária e estética em que, pela primeira vez, somos protagonistas das nossas próprias histórias, não existem terceiros. O levante do cinema negro brasileiro evidencia a potência das nossas vivências e histórias. Por mais que o caminho ainda seja longo, ele foi traçado e está aberto para que possa ser construído e moldado por nossa autonomia narrativa.

Assim como Glauber Rocha impôs em seu manifesto “A estética da fome” (1965) a prioridade de trazer histórias anticoloniais feita por nós, valorizando o realismo mais endógeno, creio que este movimento que aflora no novo cinema brasileiro é esteticamente tão revolucionário quanto o Cinema Novo, pois cria uma nova variável cinematográfica nacional que quebra as correntes comerciais antes impostas acerca do povo afro-brasileiro. Este movimento atual de pós-retomada consolida a representatividade afro-brasileira e presta homenagem para aqueles que vieram antes, forraram o chão e nos prepararam para este momento.

Como diria a poetisa afro-americana Maya Angelou em seu poema “Still I rise”: “Sou o sonho e a esperança dos escravos, eu me levanto”.

Nosso caminho no cinema brasileiro já vem sendo preparado há muito tempo, por pessoas como Zózimo Bull e Adélia Sampaio, que abriram alas para atuarmos de maneira representativa, sem o uso de arquétipos. Somos nós por nós desta vez, nada nos aparta e nada vai nos impedir de contar nossas histórias.

Viva o cinema negro!