“A história da invasão na igreja é uma enganação”. Moradores contestam cassação de vereador de Curitiba
Renato Freitas teve cassação aprovada em Conselho de Ética após episódio em igreja durante ato antirracista no Paraná. Vídeos mostram que não houve invasão como alegado pelos vereadores
O Conselho de Ética da Câmara Municipal de Curitiba aprovou nesta semana o parecer pela cassação do vereador Renato Freitas (PT). Ele foi denunciado por quebra de decoro parlamentar por conta de episódio na Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no dia em que todo o país se manifestava pelos assassinatos racistas de Moïse Kabagambe e Durval Teófilo Filho, em fevereiro deste ano.
Foram cinco votos pela cassação, um pela suspensão do mandato por seis meses, e outro pelo arquivamento. A decisão final vai para o plenário da casa. Caso 20 dos 38 vereadores concordem com o parecer, a cassação do vereador será efetivada. A defesa do vereador pode ainda recorrer da decisão junto à Comissão de Constituição e Justiça (CJJ) e caso a comissão não acate o pedido da defesa, a Câmara terá o prazo de três sessões para marcar o julgamento do vereador.
A notícia de uma invasão na igreja durante a manifestação em Curitiba, que teria tido a participação do vereador Renato Freitas, se tornou rapidamente um dos assuntos mais comentados no dia do ato, em fevereiro deste ano. Noticiários afirmavam que o padre Luiz Haas celebrava uma missa no momento em que os manifestantes teriam ocupado a igreja.
Desde então, à medida em que crescia uma onda de ódio contra os manifestantes e, sobretudo contra o vereador, parlamentares aproveitaram a ocasião para abrir o processo de cassação de Renato Freitas. O vereador Sidnei Toaldo (Patriota) assumiu a relatoria do parecer no Conselho de Ética. Contudo, jornalistas, ativistas e outros moradores de Curitiba apontam oportunismo, racismo e perseguição durante o processo. Vídeos divulgados por usuários na web contestam, inclusive, a versão de que houve invasão na Igreja e de que havia uma missa no instante em que manifestantes entraram no altar.
“Muitos de vocês ouviram a história do vereador que teria invadido uma igreja em Curitiba. Muitos de vocês foram enganados”, escreveu o jornalista Álvaro Borba. Em uma série de postagens do Twitter, Álvaro expôs vídeos que comprovariam uma rede de fake news sobre o caso, especialmente sobre a “invasão” durante uma missa.
Um vídeo da transmissão ao vivo da missa mostra o momento em que o padre reclama dos atos antirracistas que ocorriam do lado de fora da Igreja e, nas imagens, os manifestantes aparecem no interior da casa quando a missa já havia finalizado. Usuários também mostram o vídeo para comprovar que não houve confrontos, como muitos apontavam.
“Se o vereador Renato Freitas interrompeu uma missa, o que explica os bancos e altar vazios no momento de sua chegada? Não havia missa. Não houve invasão. Não houve vandalismo. Por favor, ajudem a @CamaraCuritiba a ver essas imagens”, escreveu Álvaro.
Em primeiro lugar: não houve invasão, não houve beata desmaiando, não houve vandalismo. Como é possível saber disso? A igreja transmite a missa. Aqui, depois da primeira hora de vídeo, vemos os manifestantes entrando. Nada demais. https://t.co/pbnxHSYcBj
— Arvro (@alvaroborba) May 11, 2022
No mesmo período histórico em que a igreja foi "embranquecida", Curitiba oferecia sua maior jóia arquitetônica, o edifício Garcez, aos nazistas. Sim, a igreja embranqueceu enquanto a suástica tremulava soberana não muito longe dali. pic.twitter.com/z1HHBNd3sM
— Arvro (@alvaroborba) May 11, 2022
Se o vereador Renato Freitas interrompeu uma missa, o que explica os bancos e altar vazios no momento de sua chegada? Não havia missa. Não houve invasão. Não houve vandalismo. Por favor, ajudem a @CamaraCuritiba a ver essas imagens. pic.twitter.com/cIVmGQyYHf
— Arvro (@alvaroborba) May 11, 2022
Ele também aponta o processo histórico de embranquecimento da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, que foi construída em 1737 diante de um cemitério de escravizados, e permaneceu dedicada aos pretos até a década de 1930. “Em função de todo esse histórico, as manifestações antirracistas sempre ocorreram naquela mesma igreja. Como jornalista em Curitiba, presenciei várias ao longo das últimas duas décadas”, apontou.
Frei David, padre franciscano, aponta que em quase todo o lugar do Brasil há uma igreja do Rosário de homens pretos. “Esta igreja nasceu no tempo da escravidão para ser o espaço do grito da dor do povo negro”, disse. Em defesa da manifestação que ocorria naquele dia, várias testemunhas disseram em plenário na Câmara dos Vereadores que os manifestantes tinham o desejo de que a igreja participasse do ato pelas vidas negras que ocorria naquele domingo, do lado de fora. Muitos pediam, por isso, para que a igreja não fechasse as portas.
“Nossa proposta em momento algum foi confrontar ou atrapalhar, pelo contrário, nós estávamos ali executando os princípios cristãos que pra nós são muito caros, como a valorização da vida”, disse Renato em plenário da Câmara.
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“Quem perde com a decisão de hoje contra o vereador Renato Freitas é a democracia”, escreveu a vereadora Carol Dartora, após a decisão do Conselho do Ética. “Vamos lutar para que a cassação seja rejeitada no plenário e que a cidade de Curitiba não acumule mais essa dívida com a história, a vida e a memória da população negra”.
Em nota, o Partido dos Trabalhadores do Paraná reforça que o vereador pediu desculpas pela atitude e a própria Arquidiocese de Curitiba enviou uma carta ao Conselho de Ética da Câmara, onde declara que aceita as desculpas de Renato e que é contra a cassação de seu mandato. “Percebe-se na militância do vereador o anseio por justiça em favor daqueles que historicamente sofrem discriminação em nosso país. A causa é nobre e merece respeito”, diz a carta da Arquidiocese. Para o partido, “a indicação pela cassação só demonstra a perseguição política contra o vereador e sua representatividade dentro da Câmara Municipal”.
O mandato do vereador afirma em nota que há uma violência política racial permeando o processo de cassação. “O voto do vereador relator do processo no Conselho de Ética da Câmara de Curitiba, Sidnei Toaldo, deixa claro que não existem elementos para qualificar o episódio como falta de decoro parlamentar, ficando evidente o caráter persecutório do processo”, afirmam.
A equipe ressalta ainda o episódio do vazamento de um áudio produzido pelo vereador Márcio Barros (PSD) no sentido de constranger uma das integrantes do Conselho de Ética, Noêmia Rocha (MDB). “A parlamentar também foi pressionada por figuras nacionais da Igreja Evangélica como Silas Malafaia e Marco Feliciano. Esse processo de coerção continuou ainda no dia do julgamento na Conselho de Ética, 10/5, que contou com a presença do jornalista apoiador do atual presidente, Oswaldo Eustáquio. Foi no programa de rádio dele que os pastores fizeram a pressão na vereadora Noêmia Rocha, que também é ligada à Igreja Evangélica”.
Denúncias de racismo
No decorrer do processo contra Renato Freitas, o vereador também tem sido alvo de diversas manifestações racistas. Uma delas chama atenção uma vez que teria sido enviada da conta do vereador Sidnei Toaldo (Patriota), relator do processo de cassação.
“A Câmara de vereadores de Curitiba não é seu lugar, Renato. Volta para a senzala. E depois de você vamos dar um jeito de cassar a Carol Dartora e o Herivelto”, diz um trecho do e-mail. “Vamos branquear Curitiba e a região Sul, queira você ou não. Seu negrinho”.