Por Tadeu Nunes Ferreira

Copenhague, Dinamarca, início do século XX. Com a eclosão da Primeira Grande Guerra, o país declara rapidamente sua neutralidade. No entanto, apesar da ausência de eventos bélicos significativos em seu território e de um aparente benefício financeiro inicial, durante o chamado “período entreguerras”, a economia entra em colapso. Ocorrem perdas salariais severas, forma-se um contingente de pessoas em extrema pobreza e, consequentemente, emergem todas as mazelas inerentes a esse processo.

Nesse contexto, uma mulher cria um mecanismo macabro para obter lucro rapidamente. Explorando a miséria e o desespero de dezenas de mulheres dinamarquesas que entregavam seus filhos para adoção, Dagmar Overbye passa a recebê-los. Em vez de encaminhá-los a novas famílias, ela os mata friamente, assombrando uma sociedade já mergulhada nas consequências indiretas — mas não menos aterradoras — de uma guerra sem precedentes.

Foto: divulgação

Concorrendo ao Oscar de Melhor Filme Internacional, A Garota da Agulha, do cineasta Magnus Von Horn, é inspirado em uma terrível história real e utiliza elementos de som, imagem e roteiro para levar o espectador a um misto de angústia e curiosidade. Rodado em preto e branco, o longa usa luz e sombra como um componente adicional, quase um personagem à parte, e é descaradamente expressionista. É como se o diretor tentasse alertar sobre o que está por vir, escancarando expressões faciais distorcidas nos primeiros segundos da projeção.

O que se segue são eventos que mostram, por meio dos diálogos e das situações, como o contato com a miséria, o sofrimento e o grotesco pode migrar de um terrível desconforto para o conformismo e a apatia. O filme parece chocar exatamente por isso — quase uma ode ao pensamento de Hannah Arendt (1906-1975). O mal parece fazer parte do modo de ser e estar daquele período, como se houvesse um aval inconsciente ou uma aceitação tácita e justificada do sofrimento cotidiano.

Outro ponto igualmente assustador é a representação dos corpos. Nos segundos iniciais, as imagens vão se tornando subjetiva e, em alguns casos, objetivamente distorcidas, refletindo a trajetória dos personagens em cenários cuidadosamente elaborados e filmados no contraste do preto e branco.

A história da protagonista, Karoline (Victoria Carmen Sonne), uma jovem trabalhadora de uma fábrica de costura que não tem notícias do marido enviado para a guerra, evolui do “romance”, semelhante à redenção típica da heroína, para a tragédia. Ao se envolver com outro homem (o proprietário da fábrica), acaba engravidando indesejadamente, o que a leva a tentar um aborto com uma agulha em uma casa de banho. É nesse momento que encontra Dagmar (personagem da excelente Trine Dyrholm), e seu caminho se transforma em um verdadeiro universo em desencanto.

Foto: divulgação

No desenrolar da trama, seu marido ressurge com o rosto desfigurado pela guerra. Inicialmente rejeitado por Karoline, ele depois se torna seu único sustentáculo naquela atmosfera densa e sem esperança. Usado como atração/aberração em um circo, ele se transforma em um símbolo dos horrores da guerra, exposto como uma demonstração crua da tragédia humana. O olhar para esse ser humano, em meio ao horror, em algum momento deixa o campo da empatia e da compaixão e passa a ser meramente utilitário.

O sofrimento parece ser instrumentalizado como uma solução para as angústias humanas, explorado tanto financeiramente quanto psicologicamente para oferecer à sociedade algo para apontar, algo para execrar e, ao mesmo tempo, algo que permita dizer narcisicamente: “ainda bem que não é comigo”. Nesse sentido, o humano dialoga com o bestial, expondo uma das principais características do grotesco: a acachapante dissonância. Mas, no caso de A Garota da Agulha, essa dissonância não se restringe ao plano individual — a sociedade inteira parece confusa e perdida. Ela se deslegitima a todo momento; as pessoas parecem perder sua humanidade à medida que se entregam à desenfreada busca pela sobrevivência.

A Garota da Agulha é um daqueles filmes que produzem uma angústia que só pode ser dissipada por um novo contato com o belo (em sua forma mais clichê) ou com uma estética mais agradável — algo que pode funcionar como uma tentativa de “purificar” os pensamentos, uma manifestação igualmente previsível do que se entende por “humano”. Von Horn mostra que, diante da tragédia e da desesperança, valores e princípios éticos tornam-se etéreos, quase como uma névoa fina, distante e fugidia. Assim, o cineasta se revela um mestre na desconstrução do humano e na representação do grotesco, firmando-se como um gênio do horror psicológico em seu flerte tão peculiar com o expressionismo alemão.

Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.