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‘A Garota da Agulha’ expõe a hipocrisia e o abandono das mulheres após Primeira Guerra
O indicado a Melhor Filme Internacional retrata os desafios de uma jovem diante da pobreza extrema.
Por Isabella Vilela
‘A Garota da Agulha’ (2024), dirigido por Magnus von Horn e indicado a Melhor Filme Internacional no Oscar 2025, é um daqueles achados na categoria que ficam pairando na mente por dias após assistir. O concorrente direto de Ainda Estou Aqui apresenta um olhar sobre a Dinamarca do pós-Primeira Guerra Mundial ao explorar traumas individuais e coletivos do período, focando principalmente na precariedade social que permitiu crimes brutais como os da assassina em série Dagmar Overbye. Situada em 1919, a obra captura um ponto chave da história europeia, quando as cicatrizes do conflito ainda estavam completamente abertas nas estruturas sociais e econômicas. A história de Karoline, protagonista fictícia, se entrelaça com a de Overbye e entrega uma visão sensível dos desafios enfrentados pelas mulheres da época e que ressoam 106 anos depois, nos dias atuais.
Entender o contexto histórico é fundamental para compreender os eventos retratados. A Primeira Guerra Mundial (1914-1918) desestabilizou os países diretamente envolvidos nos combates, mas também as nações vizinhas, que enfrentaram crises econômicas e sociais. A Dinamarca, embora oficialmente neutra, sofreu com os impactos do conflito, como inflação, desemprego e escassez de recursos, consequentemente impactando as dificuldades da classe trabalhadora e tornando a sobrevivência um desafio diário, especialmente para mulheres sem suporte familiar ou institucional. É nesse ambiente de desamparo que práticas como as de Overbye se tornaram possíveis.
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O roteiro, escrito pelo próprio diretor junto com a premiada escritora dinamarquesa Line Langebek Knudsen, mostra uma figura de Dagmar Overbye que personifica os extremos da marginalização social e da ausência de mecanismos de proteção infantil e feminina. O tráfico de crianças e os chamados “anjos da morte” – mulheres que assassinavam recém-nascidos – não eram incomuns em uma época em que a contracepção era escassa e as mães solo eram duramente condenadas pela sociedade. Durante os três atos, o longa retrata destemidamente e incansavelmente como a falta de opções empurrava mulheres para situações desesperadoras, desde a busca pelo casamento como forma de mudar de vida, até o desespero em ter que recorrer a serviços de adoção clandestinos sem imaginar o destino cruel de seus filhos.
Essa constante exposição da negligência do Estado em relação à população mais vulnerável dialoga com questões contemporâneas que afetam diretamente a população feminina em relação aos direitos reprodutivos. A marginalização dessas pautas, ainda que sob diferentes formas, persiste na atualidade, principalmente quando observamos o debate global sobre aborto e assistência social. Bebendo da fonte do terror surrealista, o longa provoca uma reflexão sobre como a falta de suporte às mães em situação de vulnerabilidade ainda resulta em tragédias evitáveis.
Para entender melhor, precisamos voltar no tempo e lembrar que, durante a Primeira Guerra Mundial, a prática do aborto era amplamente ilegal e estigmatizada, o que resultava na ausência de registros oficiais e na clandestinidade dos procedimentos. Consequentemente, não há dados precisos ou médias confiáveis sobre o número de mulheres que realizaram abortos nesse período.
Além disso, a ausência de homens, que estavam no front, levou muitas mulheres a assumir papeis tradicionalmente masculinos no mercado de trabalho e na sociedade. Após a guerra, houve uma obsessão natalista em países como a França, que incentivava as mulheres a terem mais filhos para repovoar a nação. Isso resultou na promulgação de leis que proibiam informações sobre contracepção e aborto e reforçavam o controle sobre os corpos femininos.
Outro ponto relevante em A Garota da Agulha é a abordagem visual e narrativa, que reforça o sentimento de desamparo e opressão vivido pelas personagens. Escolhido gravar em preto e branco, a cinematografia sombria e os cenários degradados de Copenhague simbolizam a desesperança da época, enquanto a atuação da atriz Victoria Carmen Sonne transmite com maestria o peso emocional de sua trajetória. O uso de uma protagonista fictícia, em vez de focar diretamente na figura histórica de Overbye, interpretada pela veterana Trine Dyrholm, permite um olhar mais humanizado sobre as vítimas, escolha narrativa que amplia a complexidade da história e evita uma visão meramente sensacionalista dos crimes.
Por mais que o filme provavelmente não esteja no radar dos favoritos da categoria, é uma obra que merece a devida atenção de críticos e do público, principalmente o estadunidense, considerando os problemas atuais que o país vem sofrendo no novo comando de Donald Trump. É preciso entender que essa obra não se limita, de forma alguma, a reconstruir um caso de assassinato em série, mas sim apresentar uma análise profunda das condições que permitiram sua ocorrência. O que estamos assistindo aqui é uma denúncia sobre como momentos de crise político-social podem gerar ambientes propícios para a proliferação da violência e da negligência institucional. Ao fazer esse resgate histórico, a obra sugere que, para evitar que tragédias semelhantes se repitam, não existe outra saída a não ser compreender e, acima de tudo, apoiar e enfrentar ativamente as causas estruturais da marginalização social.
Texto produzido em colaboração a partir da Comunidade Cine NINJA. Seu conteúdo não expressa, necessariamente, a opinião oficial da Cine NINJA ou Mídia NINJA.