Enquanto houver famintos na Amazônia, a sua preservação não estará garantida

Presidente Lula discursando na Cúpula da Amazônia. Foto:Ricardo Stuckert

Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique por José Graziano da Silva e Thiago Lima*

A Cúpula da Amazônia termina com resultados modestos e potencialmente relevantes em termos de combate à fome. A Amazônia brasileira, vale dizer, é atualmente a região do país que tem os maiores níveis de insegurança alimentar, superando o Nordeste. A Declaração Presidencial ao final do encontro não produz obrigações vinculantes. Contudo, cria um amplo mandato político que poderá ser mobilizado por atores nacionais e subnacionais, estatais e não-estatais, e, principalmente, pela revitalizada Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).  

Se terão sucesso, o tempo dirá. De qualquer modo, para avaliar o que temos em mãos, um pouco de contexto se faz necessário. Primeiro, porque a tarefa de organizar uma profícua cooperação regional entre os oito membros da OTCA é extremamente dura e vai depender muito dos países que ensaiaram uma liderança no processo até agora: Brasil e Colômbia. Segundo, porque o tratamento regional da insegurança alimentar e nutricional, na Amazônia, é ainda insipiente: nem mesmo dispomos de dados atualizados para todos os países. Terceiro, porque a tentativa de impulsionar um regionalismo amazônico ocorre, imediatamente, como uma estratégia para as negociações climáticas globais, isto é, formar uma coalizão de países amazônicos para fazer frente à pressão internacional por preservação da Amazônia. E quarto, mas não menos importante: encontrar atividades econômicas efetivamente sustentáveis para afastar a ideia de uma Amazônia intocável. Nesse ponto o combate à fome pode oferecer um leque de alternativas promissoras. 

A política internacional na Amazônia

Comecemos pelo anfitrião. O Brasil apenas recentemente deixou para trás um governo hostil ao regionalismo sul-americano, à preservação da Amazônia e ao bem-estar de seus povos. Foi no governo passado, também, que a fome atingiu seu maior quantitativo já medido: 70 milhões de pessoas, segundo a FAO. Apesar de desejável, parece prematuro afirmar que outro governo do tipo não será eleito no futuro próximo, e os vizinhos sabem disso. Eles, por sua vez, possuem seus problemas. Peru e Equador vivem quadros de instabilidade política. A Bolívia ainda se recupera de um golpe de Estado. A Venezuela, que é criticada pela falta de democracia e pela supressão de direitos humanos, possui laços militares com a Rússia e contesta o capitalismo. A Colômbia abriga em seu território bases militares dos Estados Unidos. Guiana e Suriname possuem economias muito mais frágeis que os vizinhos. No geral, os países não vivem bonança econômica. A França, que possui um enclave no continente – o departamento ultramarino da Guiana Francesa –, está deliberadamente excluída da OCTA.  

Sintomaticamente, a sede da OTCA está em Brasília. Isto é resquício de um tempo em que a elite política explicitamente tinha como objetivo colonizar a Amazônia legal. Agora, há um descompasso entre o discurso que valoriza o Tratado da Cooperação Amazônica como o primeiro arranjo ecopolítico regional do tipo e o fato de seu centro administrativo não estar na Amazônia. Na verdade, o histórico da OTCA não permite classificá-la como uma organização forte e atuante e um dos objetivos escritos na Declaração é justamente o seu fortalecimento institucional. Resta ver se os países irão garantir-lhe os recursos humanos e orçamentários condizentes com a ambição da Declaração. Ademais, se o mote “nada de nós sem nós” repetido nos diálogos que precederam a Cúpula for levado a sério, dificilmente o comando da organização poderá ser exercido de fora do território amazônico, já que aquelas populações locais reclamam – e com razão – que a formulação de políticas públicas e a produção do conhecimento sejam realizadas no seio da região.

Por fim, teremos que observar se o Brasil, na condição de maior potência da OTCA, assumirá os custos econômicos desproporcionais da liderança (imaginar reciprocidade estrita dos vizinhos é inviabilizar a Organização), com quais vizinhos poderá mais compartilhá-los (Colômbia?) e em que medida estará disposto a renunciar a uma informalidade na qual seu diferencial de poder o coloca em condições vantajosas de negociação com os outros governos, sobretudo bilateralmente. Construir consensos, neste cenário, exigirá bastante engajamento financeiro e humano, principalmente da presidência, mas consensos são fundamentais para uma forte coalizão amazônica. 

A OTCA e a agenda da Fome 

O Tratado da Cooperação Amazônica (TCA) foi assinado em 1978 e entrou em vigor em 1980. Sua principal mola propulsora foi a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, 1972. Com raízes num processo iniciado em 1968, aquela Conferência (boicotada pela União Soviética) foi o primeiro encontro multilateral de grande expressão a denunciar a crise climática e destacar a necessidade de preservação dos biomas que ainda não haviam sido destruídos pela revolução industrial. Naquela época, a Amazônia era tida equivocadamente como “o pulmão do mundo”, e foi alçada à condição de pilar crucial para o equilíbrio ecológico do planeta. A partir daí surgiram ventilações sobre a internacionalização do bioma para o bem público global.  

O TCA, que nasce com a porta fechada para a adesão da França, é uma resposta a isso. Seu texto prega a cooperação regional para reforçar a soberania nacional dos membros sobre suas respectivas parcelas da Floresta, refuta a internacionalização da Amazônia e defende a promoção do desenvolvimento e da preservação ambiental na região. Poucas ações de grande envergadura se seguiram à assinatura do Tratado até que, em 1995, decide-se pela criação de uma Secretaria Permanente. Já a Organização do TCA (OTCA) é assinada em 1998 e entra em exercício em 2002. Notamos, assim, que os governos de PSDB e PT viram a necessidade de fortalecer o arranjo. Em 2019, sete países assinaram o Pacto de Letícia pela Amazônia, na Colômbia, sem a presença da Venezuela, e, em 2021, os membros do Pacto respaldaram a necessidade de fortalecimento institucional da OTCA. 

Nesta trajetória, o principal produto sobre o tema da fome foi o relatório Situación y Perspectivas de la Seguridad Alimentaria en la Amazonia en un Marco de Producción Agropecuaria y de Cooperación Intra-Regional, de 1997, sob a presidência pró-tempore da Venezuela, mas ele não gerou ações concretas relevantes. Em 2009 ocorre uma Cúpula da OTCA como preparação para a COP 15, de Copenhagen, naquele mesmo ano. Esvaziada pela ausência de vários presidentes, a declaração final menciona a Segurança Alimentar, mas também não resulta em atividades substanciais. A Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica (AECA) de 2010-2018, documento que guia a ação da OTCA, menciona a segurança alimentar e nutricional dos povos indígenas da Amazônia como um novo tema, e indica a intenção de ações de curto, médio e longo-prazos que promovam conexões entre saúde, segurança alimentar e mudanças climáticas. O documento aborda o desenvolvimento de biocomércio, privilegiando a agregação de valor local dos produtos, e a intenção de realizar pesquisas de vigilância e de composição nutricional de alimentos autóctones. No entanto, parece não haver uma AECA posterior a esta. No Pacto de Letícia e em seu Plano de Ação, não há menção a questões alimentares. 

O movimento mais específico para inclusão do combate à fome como um tema prioritário ocorre em 2013, numa Reunião oficial de representantes dos países para análise de conceitos em torno da soberania alimentar, SAN e DHAA, com vistas a inserção do tema na Agenda Estratégica de Cooperação Amazônica, mas o trabalho também não avança. Atualmente, portanto, SAN e DHAA aparecem de forma subsidiária, não estando entre as Áreas de Trabalho singulares da OTCA. Assim, observa-se que o combate à fome endêmica da região não faz parte da agenda prioritária da OTCA. 

O tamanho do desafio da Fome na Amazônia 

Dados apontam que estar na grande floresta significa estar mais vulnerável à insegurança hídrica, alimentar e nutricional, do que em outras partes da América do Sul. As informações que temos do Brasil apontam que 45% da população da região Norte (onde está a maior parte da Amazônia legal) está no Mapa da Insegurança Alimentar e Nutricional (Mapa InSAN). Este percentual deve ser similar nos vizinhos. Entretanto, há especificidades entre as populações indígenas que podem configurar quadros mais graves, como a imposição de inanição aguda (faminehambruna) ao povo Yanomâmi. 

A similaridade pode ser presumida pelo conhecimento geral que temos sobre a produção da fome no mundo: pessoas negras e indígenas, de zonas rurais, com menor letramento e maior dificuldade de acesso à água potável tendem a ser as mais famintas. Entre elas, as mulheres são as que mais sofrem. No Brasil, a maior proporção dos lares com crianças onde há insegurança alimentar está no Norte.  

Somado a esses fatores, temos a pobreza e a miséria, que dificultam a compra de alimentos. A produção de alimentos para subsistência, por sua vez, está histórica e progressivamente ameaçada pelo avanço de dinâmicas sociais próprias do capitalismo. Assim, os territórios de sobrevivência material e imaterial vão se tornando terrenos sobre os quais atividades econômicas legais e ilegais dão sustentação a atores que impõem seu poder sobre as populações locais. A expansão da mineração e da agropecuária via desmatamento, legal ou ilegal, juntas a outras atividades criminais, principalmente tráfico de drogas, extração de madeira e garimpo, estão contaminando as águas, tornando-as impróprias para o consumo, para a agricultura e para a pesca, agravando as possibilidades de alimentação.  

Outro aspecto grave é que a qualidade da alimentação vem decaindo em termos nutricionais e culturais. Com relação ao primeiro, as populações rurais e urbanas estão substituindo seus roçados e quintais produtivos por culturas para venda no mercado. Isso tem diminuído a oferta local de alimentos frescos variados e aumentado o consumo de ultraprocessados ou de alimentos importados de outros regiões longínquas do Brasil, como batatas e alface de São Paulo. Ademais, a substituição de cultivos para subsistência ou mercados locais por produtos comerciais tem levado ao surgimento de monoculturas, principalmente o de açaí e outros, como cacau. Estes monocultivos afetam os ciclos dos insetos que são necessários para polinizar a floresta e, assim, reduz-se a biodiversidade.  

Tudo isso ocorre num bioma gigantesco e pouco populado. Cerca de 40 milhões de pessoas habitam uma região que, em seu contorno maior, responde por aproximadamente 40% da superfície da América Latina e o Caribe, 85% do território dos Estados Unidos. No Brasil, algo em torno de 25 milhões de pessoas vivem numa faixa que corresponde a praticamente 60% do território nacional. É nestas condições que o “fator Amazônia”, como mencionaram gestores e pesquisadores nos Diálogos Amazônicos, se impõe. As distâncias e custos de transporte e de energia são relativamente muito maiores do que no restante do país. As dificuldades próprias do terreno, nos vizinhos, devem impor condições semelhantes, mas as dimensões brasileiras levam a desafios singulares para o desenvolvimento de mercados e execução de políticas públicas para produção de alimentos saudáveis e de alimentação adequada. 

A fome na Declaração de Belém: presenças e ausências da conexão climática 

A Cúpula de Belém ocorreu um dia após os Diálogos Amazônicos. Não deixa de ser um feito do governo brasileiro, aliás, ter reunido os oito membros da OTCA, sendo cinco mandatários, em tão pouco tempo de mandato e após um hiato de 14 anos. 

Em que pesem os esforços para promover a participação social, é pouco provável que as 405 atividades que compuseram o evento tenham conseguido afetar significativamente a Declaração que, de praxe, já deveria estar pré-negociada entre os membros. Mesmo assim, os Diálogos geraram importantes contribuições para conhecer melhor as demandas e expectativas dos amazônidas sobre as possibilidades de cooperação regional, e para que os amazônidas se inteirassem sobre a Cúpula e a OTCA (bastante desconhecidos, aliás). Muitos foram os relatos e pesquisas sobre os desafios da segurança alimentar e nutricional na região, com especial destaque para os programas que pagam insuficientes subsídios aos pequenos produtores de alimentos. No conjunto, o Programa Nacional de Alimentação Escolar certamente mereceria prioridade. 

Com relação à fome, a Declaração menciona o termo em três dos 28 itens preambulares, destacando em um deles que a “erradicação da fome (…) é requisito indispensável para o desenvolvimento sustentável da região amazônica e que o fortalecimento do multilateralismo nas esferas ambiental, social e econômico-comercial constitui ferramenta importante para esses fins”. Já no trecho de Decisões, composto por 113 parágrafos, três deles formam um capítulo específico denominado “Segurança e soberania alimentar e nutricional” (SSAN). O pequeno capítulo, um pouco confuso, versa sobre coordenar ações em SSAN, tanto para produção de alimentos visando os mercados local e regional, quanto para a exportação. Outros pontos da declaração tratam de agrobiodiversidade e da produção sustentável de alimentos, considerando os sistemas tradicionais, indígenas, ribeirinhos e quilombolas, tanto para gerar renda quanto para melhorar o consumo. A pesquisa, a assistência técnica e a extensão rural são importantes pontos de apoio para isso. 

O capítulo também solicita apoio da Secretaria da OTCA para organização de eventos e iniciativas que fortaleçam a troca de experiência e a colaboração nesta agenda, com foco nas particularidades da região, levando o DHAA “especialmente aos povos indígenas, às comunidades tradicionais e às populações empobrecidas dos centros urbanos da região”. Por fim, aponta a intenção de “iniciar um processo de diálogo para o desenvolvimento de uma estratégia amazônica de SSAN, com atenção à produção, disponibilidade, oferta e acesso a alimentos da biodiversidade amazônica, em que seja priorizado o combate à desnutrição infantil crônica”. 

No geral, podemos considerar que a inclusão da fome no texto da OTCA é uma inovação bem-vinda. Precisamos enfrentar este flagelo sem rodeios e isso fica claro na Declaração. Outros termos importantes mencionados são Soberania Alimentar, Segurança Alimentar e Nutricional e Direito Humano à Alimentação Adequada. Os atores poderão se ancorar neles para defenderem suas agendas. Ressalte-se, aliás, que muito dependerá do plano de ação, ou da AECA, que se fizerem a partir deste capítulo e de outros trechos da Declaração. 

 Entretanto, algumas ausências foram sentidas. Duas delas são mais operativas. Uma é a falta de indicação da criação de uma Comissão Executiva, em nível ministerial, para a implementação das ações de segurança alimentar, o que daria um peso específico ao tema. Outra é a ausência de uma proposta de um levantamento sobre a InSAN Pan-Amazônica, pois, sem dados atualizados, não há como saber a real dimensão do problema. É importante notar, porém, que a Declaração deixa a porta aberta para que essas propostas sejam incluídas no detalhamento. 

Em termos estratégicos, a principal deficiência da Declaração foi não fixar o princípio de que o combate a fome na região e a promoção da segurança alimentar podem ser um vetor de recuperação e preservação sustentável da região Amazônica. É claro que apenas isso não vai dar conta de conservar toda a Floresta, mas o desenvolvimento deste nexo é importante para que os países amazônicos possam barganhar por acordos internacionais que melhorem a capacidade de execução de políticas públicas, como as compras locais para a alimentação escolar, o PAA, o PPGM-BIO, entre outros que estimulem a conservação e a recuperação da biodiversidade. Mais do que isso, sabemos que a alimentação adequada é fundamental para uma boa saúde, para melhorar a capacidade de aprendizagem das crianças e para aumentar a produtividade dos adultos. Sem questionarmos que o DHAA é um direito categórico e inscrito em nossa Constituição, é oportuno reforçar que desenvolvimento das condições para a fruição da cidadania trará consigo auxílio fundamental para a conservação da Amazônia – e a superação de todas as formas de fome é parte inescapável deste processo.

Lembremos de Josué de Castro que, mesmo exilado em Paris, participou da Conferência de 1972 de Estocolmo com o trabalho “Subdesenvolvimento: Causa Primeira da Poluição”. Nele, criticou a proposta de congelamento do crescimento econômico e do desenvolvimento produtivo das regiões periféricas como solução para o problema do meio ambiente. Castro defendeu o tratamento holístico da questão ecológica, ou seja, sem a separação ontológica entre humanos e natureza. Argumentou que o Meio, na verdade, era composto também por estruturas materiais e mentais, em constante alteração pela inerente interação entre elas. Concluiu, por isso, que a destruição ecológica nos países desenvolvidos e a crescente devastação nos países subdesenvolvidos eram derivados de processos sociais comuns: capitalismo, colonialismo e neocolonialismo. Para se combater a poluição, portanto, era necessário superar o subdesenvolvimento. Ou seja, enquanto houver famintos na Amazônia, a sua preservação não estará garantida. É neste sentido que a promoção do SSAN e do DHAA podem ser tomados como eixos de múltiplas dimensões – produtiva, fundiária, científica, tecnológica, comercial, cultural, entre outras – que, holisticamente, contribuição para o reequilíbrio ecológico do planeta.

Ironicamente, em setembro próximo fará 50 anos da morte de Josué de Castro no exílio, impedido pela ditadura que vigia no Brasil de voltar à sua pátria. E a Amazônia continua a padecer do mesmo mal do subdesenvolvimento, ainda que procurem dar outros nomes ao problema.

*José Graziano da Silva é diretor do Instituto Fome Zero  e Thiago Lima é professor de Relações Internacionais da UFPB e coordenador de Alimentação e Relações Internacionais do IFZ.